Dhiego Morais 12/07/2020BlazeAcredito que possamos comparar este ano de 2019 a uma comprida locomotiva, seguida por diversos e modestos vagões. Em alguns momentos, os trilhos parecem se desviar e todo o eixo treme, nos brindando com fases de medo e hesitação. Céus! Pela janela mal dá para ver o que está mais adiante! Então, o bom passageiro abre a mala, e vê aliviado o livro ao qual já dedicava seu tempo antes de embarcar nessa viagem de longos 12 meses e metas literárias variáveis. O expresso dá um aviso claro, aviso este que diz respeito à proximidade do fim da viagem. Ora, já passamos pela estação de Novembro, logo, a última estação beira a chegada. O bom passageiro e bom leitor assente e diz: é um belo momento para deixar tudo de lado e começar mais um livro! 2019 que lute!
Depois dessa belíssima metáfora da minha vida literária, bem, podemos retornar ao objetivo de nosso texto: vamos falar de Blaze, a minha leitura mais recente.
Blaze é o sétimo e último livro lançado por Richard Bachman, álter-ego de Stephen King, grande mestre da ficção de suspense e de terror. Talvez alguns leitores estranhem essa informação, ou simplesmente não recordem muito bem, então vou trazer uma rápida contextualização: Bachman é foi o pseudônimo de King por um curto período de tempo, tempo este que o permitiu lançar algumas obras bem interessantes. O pseudônimo nasceu do interesse de King em lançar mais de um ou dois livros por ano, sem, no entanto, sobrecarregar o mercado com o seu nome, lá pela década de 70 e 80. Extremamente produtivo (até hoje!), King lançou cinco títulos antes de ser descoberto: Fúria, A Longa Marcha, A Autoestrada, O Concorrente e A Maldição (ou A Maldição do Cigano). Infelizmente, Richard Bachman viria a padecer de “câncer do pseudônimo”. Entretanto, dois outros títulos foram lançados postumamente (após King ser descoberto): Os Justiceiros, que possui uma obra-irmã, Desespero (esta sim escrita como Stephen King) e Blaze.
Em Blaze, o leitor conhecerá a história de Clay Blaisdell Júnior, popularmente conhecido como Blaze. Nosso protagonista poderia ser alguém simples, talvez desinteressante ou pouco digno de nota, mas o que Bachman narra é alguém cuja imagem deverá marcar profundamente, primeiro por sua imagem única, e, finalmente em segundo, por sua história singular. Blaze é um gigante que ultrapassa os dois metros e, devido a um acidente de infância (o pai o pegou e o atirou pela escada), ele possui uma depressão na altura da testa, característica essa que o marca por onde passa.
“Por anos ele havia se identificado como um bobo, aceitando isso como apenas mais uma parte de sua vida, como a cavidade em sua testa. Ainda assim, algo continuava a trabalhar abaixo da superfície queimada. Trabalhava com o instinto mortal das coisas vivas – toupeiras, vermes, micróbios – abaixo da superfície de um campo queimado. Esta era a parte que lhe lembrava de tudo. Cada dor, cada crueldade, cada maltrato que o mundo lhe fizera.”
Blaze teve uma infância bastante complicada, vivendo pouquíssimo em um lar colapsado, desestruturado e indo em seguida para onde definitivamente passaria sua fase mais longa: o Lar Hetton, uma espécie de reformatório dedicado às crianças complicadas e abandonadas de nossa sociedade. A novela, Blaze, permite que o leitor conheça essa parte do passado de nosso elevado protagonista, contando com capítulos dedicados a uma parte da história de Clay marcada por desumanidade, ausência do amor da família, inocência e abusos de poder.
Clay é por si só uma figura atípica: embora sua altura e imagem sejam intimidantes, ele é capaz de entregar momentos de grande inocência, de compaixão e de simplicidade; trata-se, de maneira bem simples, de uma peça machucada de um quebra-cabeça tentando se encaixar. Se pensarmos melhor, poderemos nos lembrar de outro valoroso personagem de Stephen King, outro gigante, que se traduziu como diferente de tudo o que poderia representar: John Coffey, de À Espera de um Milagre.
Em contrapartida ao passado de Blaze, o leitor encontrará neste romance de ficção uma história sobre roubo e resgate, mais precisamente sobre como o destino rumou para um ambicioso plano de sequestro de um bebê, herdeiro de uma família abastada.
Embora Blaze aparente ser esse “gigante com um coração puro”, ele também não deve ser visto somente sob o prisma da inocência. A forma como Richard Bachman constrói a figura do protagonista, pigmentando-o de tons explicitamente cinzentos, observamos nascer um personagem complexo, bom e mau sob medida, como a natureza das relações humanas dita. E é isso, aliada a suas demais características que fazem de Blaze tão interessante, amável e odiável, nos aproximando de maneira empática a sua história de vida e ao seu final, que certamente traz o amargor à boca.
George é outro personagem digno de comentários. Se por um lado Blaze peca intelectualmente, inocente ou incapaz demais para criar e conduzir grandes planos, George é a figura que balanceia todo o jogo, um valoroso parceiro do gigante e responsável por levá-lo à criminalidade. Ainda que George tenha esse espectro deturpado de moralidade, ele é o único personagem que não abandona Blaze.
A sétima e última história de Stephen King escrevendo como Richard Bachman é diferente de tudo o que eu esperava, e, sobretudo, diferente das demais obras que eu já havia lido, escritas ou não sob esse pseudônimo. Se tomarmos como exemplo as obras Fúria, A Longa Marcha e A Maldição, nós encontraremos um Bachman que se sobressai à figura de King, escrevendo de maneira mais bruta, direta e violenta, e entregando finais abruptos, marcantes e muitas vezes pessimistas. Se analisarmos obras de Stephen King, tais como À Espera de um Milagre, Joyland ou IT, encontraremos histórias épicas e dramáticas, com personagens que se sobressaem ao cenário, cujas histórias brincam com a nossa maneira de lidar com diversos sentimentos. Porém, quando observamos de perto a conclusão de Blaze, notamos um caminho ímpar, que se aproveita de ambos os espectros de Stephen King e Richard Bachman, ao passo que entrega uma obra essencialmente triste, com pontos em que diverte e promove a estranheza.
Não espere ter conhecido completamente Richard Bachman antes de ter lido Blaze. Nem muito menos espere encontrar algo já conhecido. Embarcar nessa história é seguir por rumos inesperados e por uma estrada no mínimo reflexiva.
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