Lisa 07/03/2022
Uma voz que não se pode calar
Esse livro que é fruto de uma das maiores vozes da literatura, Toni Morrison. Ela que sabia como ninguém manejar e jogar com o poder das palavras, estabelecendo quadros relacionais de uma sociedade complexa, de vidas negras marcadas e impactadas pela opressão, que deu voz a tantas mulheres pretas caladas por serem pretas, por serem mulheres, por serem.
Assim, antes de falar de Sula eu preciso falar da prosa que a constitui. A fluidez sequencial da Morrison é algo que nunca vi, descrevendo o local e os acontecimentos num único fluxo, sem cortes, em uma transição natural como se nada pudesse abalar a realidade trivial. Passamos de um coar de café, crianças brincando e a uma idosa a busca de sua escova de cabelo para um suicídio como se cada um fosse um encadeamento de respostas perfeitamente naturais e esperado. Ao passo que você segue lendo até processar que algo grandioso e chocante acabou de acontecer. E isso é intencional, a mensagem nesse fluxo de consciência é clara: a realidade desse povo é dura e trágica, a dor é parte factual, mas a vida segue e não sucumbiremos.
E a comunidade do Fundão não sucumbe, ela resiste a chuvas, granizos, neves que destroem suas casas, a pestes que matam a sua plantação, a migração de aves, a exploração branca, aos traumas da guerra, a violências sexuais, físicas e emocionais e também a Sula. Essa que carrega o titulo da história e sobre a qual é a senhora de seu tempo. Perceba, a primeira vista Sula é a história de sobrevivência de uma comunidade negra, o Fundão e ele não muda, a história é fixada nesse ambiente e não saimos dele, mas eis que surge Sula e vemos o Fundão tal como um receptáculo observar a sua saída e aguardar a sua volta.
Mas quem é Sula? Rebelde, maldosa, transgressora, assassina, puta, traidora, insensível, barata, bruxa, a preta suja que dorme com os brancos, GUARDEM SUAS CRIANÇAS, PROTEJAM SEUS IDOSOS, aquele mal a ser combatido. Sula é livre, hasteia a liberdade de ir embora e viver pelo mundo comos os homens, de dormir com quem quiser e de trair, de abandonar e não se apegar comos os homens, de xingar como eles, de não querer filhos nem de cuidar como os mesmos. Mas como bem lembra Nellie ao dizer "você não pode fazer tudo. Você é mulher e, aliás, é uma mulher de cor. Não pode agir que nem homem." Você é uma mulher Sula, e uma com a face marcada. Para uns uma rosa, para outros a mancha do pecado. Mas seja como for, o prenúncio do seu estigma, a linha que a põe em separado de todos os outros.
Sula vive como quer, em prol de sua liberdade ainda que não tenha afeto, não tenha lar, ainda que sozinha e triste, é livre, ela diz "eu tenho a minha cabeça. E o que passa nela. O que quer dizer que tenho eu mesma... é um solitário meu". A pergunta que fica no entanto é: será que valeu a pena, menina?
O Fundão vê Sula como mais uma lástima a ser enfrentada com complacência, uma hecatombe que eventualmente iria passar, vão se os dedos, mas nunca os aneis, certo? Sula é odiada, mas também o centro habitacional do lugar. As mulheres cuidam melhor dos seus maridos, as mães cuidam com mais atenção dos seus filhos, as famílias respeitam mais os idosos, tudo que é penoso soa mais valoroso de ser feito, porque ninguem é como Sula. Mas e se essa se for? Sendo como for, ela mesma prevê: "eles vão me amar, vão sim, vai levar tempo, mas vão me amar."