Raphael 12/02/2023Mixed feelings...1º livro do ano: Vozes no Deserto
Autora: Nélida Piñon
Editora: Folha de S. Paulo, 320 páginas
Nota: 3,0/5,0
Inicio por me confessar: quem escreve esta resenha é um leitor apaixonado pelo texto de Nélida Piñon. Desde o primeiro contato travado, rendi-me à genialidade da escritora e, do alto da minha ninguendade, terminei por fazer coro ao crítico literário Eduardo Lourenço: trata-se de uma das maiores escritoras latino-americanas.
Confesso também, de saída, que a minha leitura está bastante orientada por tudo que o amigo @lucascafre escreveu em um belíssimo texto a respeito deste livro, o qual consta do blog dele, cujo link eu vou deixar indicado nos comentários a este post. Dito isso, vamos às minhas impressões.
A história das Mil e Uma Noites é conhecida. O Califa, traído pela esposa, condena todas as mulheres ao seu ódio e, obstinado em não ser novamente desonrado, casa-se com uma mulher a cada noite para, na manhã seguinte à noite de núpcias, mandá-las ao cadafalso. Para parar a carnificina, Scherezade, confiante na potência de sua imaginação, pretende se casar com o Califa e seduzi-lo com suas histórias, fisgando o coração do tirano pela curiosidade em conhecer os desfechos das tramas por ela urdidas a cada noite.
Em Vozes do Deserto, Nélida desloca o interesse das narrativas de Scherezade para a própria contadora de histórias, dando ao leitor a oportunidade de compreender a agonia de sua situação. Trancafiada nos aposentos do Califa, Scherezade vive sob a ameaça perene do fio da navalha e, durante noites sem conta, vê-se obrigada a um ritual no qual é sexualmente violada por um homem que despreza para, em seguida, colocar tudo de si no esforço de contar uma história que enfeitice o seu algoz de tal modo que, a cada amanhecer, o tirano acene ao carrasco a fim de poupar-lhe a vida por mais um dia.
Gostei do livro? Mixed feelings.
Eu entendo que, ao pretender reconstituir as circunstâncias de Scherezade, confinada a um universo muito restrito, prisioneira dos aposentos do monarca e das obrigações degradantes que assume numa luta pela própria sobrevivência; obrigada, sob a ameaça permanente que paira sobre a sua vida, a um esforço criativo absolutamente excruciante... enfim, eu entendo que uma narrativa como esta necessariamente teria de assumir uma forma circular. Capítulo após capítulo, o leitor é enredado nessa rotina e também se vê tiranizado por ela. Há momentos em que a leitura entedia, mas talvez, de maneira um tanto paradoxal, como assinalou o Lucas em seu texto, o tédio ajude a compor a ambientação da história e a experiência que é ler este livro.
Lentamente, Nélida vai deixando ver as mudanças que as histórias de Scherezade operam nas disposições íntimas do Califa, que aos poucos vai se humanizando. E essas transições vão ocorrendo de maneira realmente sutil. Paralelamente, no entanto, Scherezade, em seu esforço heroico, começa a soçobrar.
O texto é impecável, como se espera de Nélida, e o tom épico compõe bem o drama da mais famosa contadora de histórias da literatura universal. É forçoso reconhecer que se trata de uma obra ambiciosa e é possível apreciar a grande realização artística que ela encerra. Mas não vou mentir. Concluir esta leitura me demandou alguma persistência. Mas a confiança no gênio de Nélida e a ânsia de ver Scherezade livre da situação opressiva em que estava metida me conduziu até o final.
Ainda assim, entendo se tratar de um livro que não irá agradar a todos e, portanto, não o recomendaria como porta de entrada para a obra de Nélida.