G.Bay 03/05/2021Anarquistas?Vou primeiramente pontuar algumas partes que achei interessante, do ponto de vista cultural:
Lá pela página 85 Zélia demoniza a carrocinha que recolhe os cães de rua. Nem a ela, nem a sua mãe, e muito menos a tantos outros "ex-proprietários" de vizinhos, correu a ideia do adestramento dos cães. Isso não surpreende, se tratando dos idos de 1920, o que é incrível é que ainda hoje permaneça a mesma cultura: cães? sim, adestramento não.
Na página 102 Zélia enaltece o bairro famoso por "cortiços" e "brigas diárias" e onde a "Polícia não circulava" e onde os "homens não trabalhavam, a maioria ocupava a pista [...] jogando bocha e malha". Muito nostálgico, mas hoje temos vários bairros parecidos, onde a policia não entra, existem muitos "cortiços" e "brigas diárias"... Aqui me parece uma forçação de barra, visto que ela admite nunca ter pisado naquelas calçadas, querer glamorizar a lei do mais forte.
Pela página 200 fica evidente a doutrinação ideológica precoce. Previsível que o pai disse-se que as filhas eram livres para escolher a religião, mas levasse uma criança para vender jornais e assistir palestras de uma única ideologia... Ainda hoje, a ideia de que existe um "ópio dos intelectuais" é ignorada e negada por muitos, mas várias ideologias se tornaram quase religiões, com dogmas, ritos e tudo mais. Além de corromper a criança com refrigerante, ela sofreu castigos físicos ao errar letra do hino socialista, mas tudo bem, tudo pela causa.
A gravidez antes dos 21 anos era considerado "um mal" , hoje é banal. Existe na fala se Zélia, e que provavelmente representa a visão da época, uma forte carga quanto a responsabilidade do progenitor, o pai, com duas únicas hipóteses: Assumir (e morar junto, ser pai presente) ou cadeia. Hoje a ênfase é para a inevitável força da mulher e mãe que se desdobra a criar os filhos sozinha, a responsabilidade do homem é relegada ao pagamento de sextas básicas e uma visitinha no final de semana...
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Socialismo teórico vs Socialismo real
Quando Zélia indaga sua mãe sobre o significado da palavra anarquismo, ela expõe um utopia mais socialista do que anarquista (e sim eu já li Bakunin e Proudhon), até aí tudo bem, não há de se exigir precisão acadêmica de uma pessoa sem essa formação, o curioso é que Zélia imediatamente se compadece da ex-empregada Maria, imaginando que ela poderia estudar livremente. Mas quando a crise chega, quando a casa recebe parentes e vizinhos, quando o armazém fica quase sem estoque e lembrança de Maria é outra, ela "nos fazia muita falta" na cozinha e nos serviços domésticos. Aparentemente ninguém lembrou de buscar Maria Negra, a criança e Luiz, nem mesmo de enviar mantimentos num momento difícil, nada.
Novamente quando vão de férias para uma casa enorme, com vários quartos sobrando, ninguém lembra de Maria.
Ou seja, aquele mundo bonito onde os pobres finalmente poderiam prosperar, onde todos seriam motivos pelo amor de ajudar o próximo, é só na teoria. Na hora da desgraça geral, da crise, ou na hora da glória e da bonança, nada. Esse é outro aspecto, que permanece quase inalterado na nossa cultura: defender caridade com chapéu alheio.
A leitura é fluida e banal. Peca por não ter datas e nem mencionar a sua idade, isso deixa o leitor com tremendas dúvidas e algumas histórias podem parecer escabrosas. Se perde assim muito do senso histórico, do contexto. Fica difícil distinguir o quanto a vida no Brasil era atrasada em relação a outros países, ou o quanto se trata de um tempo antigo mesmo.
Para finalizar, o título não faz jus a obra. Não percebi muita graça divina que possa ser atribuída ao anarquismo da família além própria imigração. Muitos dos vieram não eram anarquistas, e embora seja o ponto alto do livro, faltou ênfase nesse ponto.