Gustavo Araujo 20/01/2015
Excelente, mas... Panfletário?
Resenhar um clássico não é tarefa fácil. Corre-se sempre o risco de cair na mesmice ou de cometer uma heresia, deixando de se apontar o que é consenso. Tratando-se de alguém como Érico Veríssimo, essa tarefa é ainda mais cruel, já que o autor gaúcho pertence ao panteão dos maiores escritores nacionais.
Começando pelo que é notório: “Olhai os Lírios do Campo” é de fato um livro belíssimo. A história de Eugênio e Olívia é tocante, verdadeira, daquelas que acontecem todos os dias com alguém conhecido. É como se o autor nos contasse fatos que realmente aconteceram. Eugênio é médico, casado – um casamento de aparências – com uma mulher rica. Recebe um telefonema do hospital: Olívia está prestes a morrer. No caminho até lá, recorda sua vida até aquele momento.
Mais do que na história pessoal de Eugênio, mergulhamos na sua psicologia. Érico Veríssimo, ao escrever o romance, diz-se, sofreu a influência de autores como Katherine Mansfield e Sommerset Maugham. Por conta disso, dotou seu protagonista de questionamentos vários, de uma humanidade sem par, tornando o leitor cúmplice de suas crises existenciais, de seus dilemas, desejos, decepções e remorsos.
É isso que torna “Olhai os Lírios do Campo” um livro fascinante. Eugênio é real. É você, sou eu, somos nós, com nossos medos e segredos mais íntimos revelados por uma prosa arguta, que nos desnuda sem qualquer cerimônia. Seríamos capazes de trocar o verdadeiro amor em nome da ambição?
Na primeira metade do romance, a questão nos desconforta. Eugênio recorda a infância, a vergonha que sentia do pai, os dias no internato e a faculdade, onde se sentia inferiorizado, apesar do amor por Olívia, sua colega de turma. Nesse contexto, o casamento com a filha de um magnata da alta sociedade porto-alegrense surge como uma tábua de salvação. Não é surpreendente a escolha do protagonista: entregar-se a uma vida vazia e frívola, em troca de conforto e riqueza; ser um coadjuvante da esposa, conviver com pessoas que só pensam em dinheiro e em promoção pessoal. E a todo tempo, sentir o martelar da saudade de Olívia e a vergonha por tê-la preterido, restringindo seus encontros a ocasiões esporádicas.
Naturalmente, a possibilidade de Olívia morrer faz com que Eugênio reavalie suas prioridades. É quando o romance entra em sua segunda metade. É quando, infelizmente, perde a força. Não que Érico Veríssimo tenha perdido a mão. A perícia ao narrar continua intacta. O uso das palavras permanece irrepreensível. O problema é o rumo que a história toma.
A impressão que se tem é que há uma lição de moral em cada entrelinha, do tipo que se encontra em livros de auto ajuda atualmente: o que realmente interessa na vida? O sucesso no trabalho ou o amor dos filhos? Dinheiro ou felicidade? É justo pensar apenas em mim ou o correto é buscar o bem estar de todos?
Diante de um fato marcante, Eugênio leva a cabo os planos que até então vinha adiando de modo covarde. Mesmo com receio e sempre perseguido por indagações fantasmagóricas, decide que sua existência deve ter algum significado especial, verdadeiro, não mais centrado no individualismo.
Lançado em 1938, o romance reflete o embate entre as correntes políticas da época, tomando partido evidente por uma delas. Isso me decepcionou um pouco. Não pela opção do autor, mas pelo fato de não ter permitido ao leitor o direito de escolha. Não é, por isso, uma obra isenta e equidistante. Antes, soa incomodamente maniqueísta.
Concluindo, pode-se dizer que “Olhai os Lírios do Campo” é uma história de superação contada de forma magnífica, a história de alguém que descobriu que para encontrar o verdadeiro sentido da vida é preciso coragem. Dito desta forma, o romance mereceria nota dez – de fato, para muitos, é o melhor livro de Érico Veríssimo --, mas na realidade, visto sob o prisma atual, o texto tem muito de panfletário.
Posso até concordar com algumas das conclusões a que Eugênio chega, mas não deixa de ser inquietante o fato do autor ter defendido determinada corrente política sem espaço para o contraditório. Nesse aspecto, pode-se dizer que o livro, ainda que escrito há quase oitenta anos, segue atual, eis que nega qualquer virtude a quem vive do outro lado do rio, conduzindo o leitor por um labirinto ricamente construído, mas com paredes apertadas e destino bem definido. Sem direito a meia-volta. Sem dar ao leitor o direito de pensar por si.
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