Steph.Mostav 30/08/2020Maior decepção do anoTW: Transfobia, TW: Gordofobia
Eu queria gostar desse livro, realmente queria. As interpretações de Anthony Hopkins e Jodie Foster me impressionaram muito quando assisti a adaptação, uns dez anos atrás, e eu lembro de achar o filme bem bacana. Além disso, pessoas nas quais eu confio elogiam bastante a habilidade do Thomas Harris. Então a experiência foi ainda pior, porque minhas expectativas não chegavam a ser altas, mas eram razoáveis - e nem isso a obra atingiu. Começando pela escrita do autor: ela é terrivelmente insossa. Mais parece um relato completamente distanciado mesmo quando o foco são questionamentos internos e o contraste entre essa distância e proximidade torna qualquer uma dessas descrições de pensamentos, emoções e raciocínios muito artificial.
Além disso, Harris se utiliza muito mal da narração em terceira pessoa quando alterna os pontos de vista de um parágrafo para o outro. Em algumas cenas, a confusão provocada por isso corresponde à própria confusão sentida pelos personagens em cena, mas em outras só atravanca o entendimento e a fluidez sem qualquer propósito.
A maneira com que o autor nos guia através das descrições mais lembra uma câmera que em determinados momentos foca no modo como os personagens gesticulam ou em detalhes do cenário, como no cinema. Aliás, o texto lembra bastante um roteiro para cinema, com diálogos dinâmicos e rápidos e algumas poucas indicações de quem fala.
Tanto as descrições quanto os diálogos na maior parte das vezes não são diretamente expositivos, mas não chegam a ter a sutileza que um bom escritor conseguiria incorporar nesse enredo. Porém, quando é conveniente, tanto os personagens quanto o narrador passam essas informações sem nenhuma naturalidade ou critério.
Aliás, o enredo avança muito mais por conta de coincidências do que pelas estratégias e atitudes dos personagens. Para um livro que tem como um dos principais focos de interesse a resolução do crime, isso se resolve de maneira fácil demais. Mesmo os obstáculos para essa resolução são todos fabricados, como se estivessem ali apenas para esticar a história. Isso faz dela muito mais maçante e repetitiva, com um clímax pouco impressionante para compensar.
O silêncio dos inocentes tenta ser muito mais do que realmente é e isso tá diretamente relacionado com a protagonista, Clarice, e quem funciona como a espécie de um mentor sinistro para Clarice, Hannibal. Quanto ao resto dos personagens, eles têm tão pouca relevância e carisma que não vejo como analisá-los poderia contribuir para uma análise mais completa. Mesmo Crawford é resumido ao sofrimento com relação ao estado de saúde da esposa e essa angústia é explorada da maneira mais banal possível.
Não me comoveu e o que claramente foi inserido pra fazer do personagem mais humano/identificável me pareceu um desvio do enredo principal e não um enredo paralelo bem escrito, até porque essa parte pessoal da vida de Crawford não se conecta a nenhum dos outros personagens e temas e no fundo é um acréscimo monótono.
Clarice poderia ser uma boa protagonista, mas para isso Harris teria que desenvolvê-la e fazer dela mais consistente. Sabemos bastante a respeito do passado de Clarice (através das perguntas de Hannibal, o que não é o recurso mais criativo para expor os acontecimentos mais importantes da vida de alguém, mas funcionou e está de acordo com o comportamento do personagem), assim como seus dilemas no presente baseados em sua bagagem emocional desde a infância. Só que a resolução desses dilemas é tão ineficiente e anticlimatica quanto a resolução do crime e o aprendizado da personagem no decorrer da história é um amontoado de cenas escritas sem qualquer nuance. Me disseram que esse livro abordava a misoginia de forma sutil. Bem, não é nada sutil. Ela passa por diversos assédios ao longo do livro, por agressões em diferentes escalas, sua capacidade é menosprezada repetidamente e em diversas cenas homens reduzem ela a um rosto ou corpo atraente. E qual é o problema de expor esse machismo? É que ele é visto e descrito como mais um obstáculo que Clarice tem que superar, no nível individual, para conseguir sucesso profissional. E não é assim que opressões funcionam, elas se amparam em uma estrutura que permite que o preconceito seja enraizado no sistema e normalizado. O restante das personagens femininas mal tem espaço ou estão mortas, então só temos basicamente o tipo de pensamento de Clarice como exemplo.
Hannibal tem carisma, eu não posso negar. Ele protagoniza todas as melhores cenas, só que esse também é um problema: para que ele possa brilhar, o autor artificialmente apaga o restante dos personagens. Hannibal é inteligente porque, ao redor dele, todos os personagens são muito mais burros. Ele parece mais interessante porque é da boca dele que saem as informações necessárias para a resolução do caso. Suas conversas com Clarice dão a impressão de profundidade porque ele fala de análises psicológicas, referências da arte e filosofia ou metáforas pretensiosas. Ele faz isso porque é excêntrico? Claro, mas como tudo no enredo, isso é conveniente demais, além de soar pedante ao extremo. Me parece que Harris fez da própria protagonista propositalmente mais comum para que Hannibal em comparação parecesse enigmático e fascinante. A aura de horror ao redor dele até funciona e vemos como ele pode ser perigoso de verdade, mas tanta expectativa de uma grande ameaça parece desperdiçada quando o autor mal o utiliza, a não ser quando precisa dele para conduzir ou atrapalhar a investigação, como se o personagem não tivesse quaisquer propósitos além desses.
E vamos ao maior problema do livro: quem comete os crimes. Thomas Harris pesquisou o bastante para inserir o discurso do chefe de uma clínica de atendimento a pessoas transgênero que critica (com toda a razão) a suspeita que a polícia levantou entre o comportamento de quem cometeu os assassinatos e os pacientes a quem ele oferece apoio, como se pessoas trans pudessem representar uma ameaça. Mas em nenhum momento o autor chegou a refletir sobre a ideia nociva que é associar crimes violentos a uma mulher trans? Não importa se Jame não é ""uma pessoa trans de verdade"" (só essa afirmação já é problemática o suficiente), de qualquer maneira o enredo estabeleceu um paralelo entre as mutilações feitas por Jame e o desejo pela transição. Sinceramente, VAI TOMAR BEM NO MEIO DO OLHO DO TEU C*, FILHO DA P*. Isso para não contar todos os pensamentos e descrições gordofobicos com absolutamente TODAS as vítimas. Nem adianta dizer que apenas os personagens são gordofobicos porque todos são moralmente cinzentos: a narrativa em terceira pessoa também é ofensiva com as personagens gordas. A mesma narrativa absolve todos os erros cometidos por policiais quando eles exercem a autoridade de forma abusiva, como quando Crawford ameaça aquele mesmo chefe da clínica de atendimento a pessoas trans porque ele não forneceu os dados pessoais dos pacientes. A cena é conduzida de forma a parecer que Crawford tomou medidas drásticas em nome da eficiência, já que para ele aquele era apenas um impedimento para a investigação, e não a desumanização de pessoas trans do modo mais nojento possível. P*, VAI TODO MUNDO PRA CASA DO C*.
Ainda tenho vários pequenos problemas com esse livro, como a descoberta da identidade de Jame feita por telefone enquanto Clarice estava conduzindo a própria investigação ou o fato de que ela demorou tanto a descobrir a motivação dos crimes quando Hannibal disse a ela DIRETAMENTE. Mais uma vez, obstáculos inseridos de propósito para atrasar a resolução do caso. Nem posso considerar essa história regular, ela é ruim mesmo, ruim e irresponsável.