Rafael 29/07/2021
O não-lugar que nos transporta a Cabo Verde
Eu me apaixonei por este livro em 2015 quando estava cursando uma matéria sobre literatura de Cabo Verde na faculdade de Letras. Hoje, em 2021, relendo-o por um motivo mais que especial, me peguei sorrindo em momentos tão triviais que fazem com que o livro seja especial.
Os contos, todos bastante curtos, falam de tanta coisa e ao mesmo tempo falam de uma coisa só: da existência humana. Ao lê-los, nos pegamos refletindo sobre os papéis de gênero na nossa sociedade - ou seja, sobre ser mulher e ser homem -, sobre a identidade nacional, a cabo-verdianidade, sobre a realidade dura, sobre a fome, a seca e a desumanização, sobre a esperança de um futuro, sobre o escape nos pensamentos e nas ilusões. E não é tudo isso muito particular e também muito universal, muito humano?
O título do livro também é um exemplo da mistura do local com o universal. Mornas, para além de se referirem à temperatura amena em qualquer lugar, são um gênero musical típico de Cabo Verde. São músicas lentas, de lamento, por vezes comparadas aos fados portugueses. A grande cantadora de mornas é Cesária Évora, estrela nacional. (Procurem-na no Spotify para terem uma noção do ritmo.)
Por tudo isso e por conseguir gerir com maestria o que Cortázar falava sobre o conto (que ele deve ser curto e causar um impacto no leitor, justamente por ser curto), "Mornas eram as noites" é um livro memorável, de uma escrita precisa e perspicaz, e um grande exemplo da grandeza da literatura cabo-verdiana. Ótima oportunidade, portanto, para que professores brasileiros trabalhem com textos africanos.
Ah, eu não poderia deixar de falar que, em alguns momentos, me lembrei de Clarice Lispector. Dina e Clarice são diferentes, muito diferentes. Não se trata de uma cópia ou qualquer coisa do gênero. Mas alguns devaneios, alguns instantes em que o pensamento - principalmente da narradora mulher - vagueia e nos leva para um outro lugar, um não-lugar, me trouxeram à mente a nossa escritora mais famosa.