Otavio.Paes 31/08/2020
Um livro para poucos
Assim Falava Zaratustra- escrito em 1883-1885
Um dos trabalhos filosóficos mais lidos e influentes de todos os tempos. Assim falou Zaratustra tem um caráter híbrido: filosofia, religião e literatura se juntam formando algo bem atraente e complexo. "Um livro para todos e para ninguém". Se, por um lado atrai o leitor por sua forma poética e metafórica, o afasta por seu hermetismo; e ao mesmo tempo em que é escrito muito diferentemente dos livros convencionais de filosofia, é de uma grande profundidade, exigindo muito cuidado na interpretação. Isto é, muitos podem ler, mas poucos podem entender.
Ao publicar Além do Bem e do Mal, livro imediatamente posterior, Nietzsche revelou ao amigo Jacob Burckhardt que a nova publicação continha "as mesmas coisas que ele havia dito antes na boca de Zaratustra, mas de modo diferente, bem diferente".
De fato, o leitor reconhecerá, linguagem metafórica e alegórica dos discursos e diálogos de Zaratustra, muitas das ideias que seriam desenvolvidas em prosa reflexiva nas obras posteriores- ou que já haviam sido abordadas em Aurora e A Gaia Ciência, livros aos quais ele chegou a se referir como " comentários ao Zaratustra antes que ele aparecesse".
Zaratustra(XII e VI a.C), profeta e poeta persa, é uma alusão ao primeiro no ocidente, a codificar uma visão binária e excludente de bem e mal.
Na concepção da filosofia de Zoroastro, o bem e o mal são forças que lutam entre si, ou seja, ele foi um dos primeiros inventores da moral, e responsável por levá-la ao plano metafísico, universal.
Faz diversas paródias, como a caverna de Zaratustra, que seria o inverso da caverna de Platão; também ironiza a Bíblia- fortificando sua crítica à moral cristã, moral esta que está bem enraizada no mundo ocidental. Enfim, satiriza as bases da cultura ocidental.
"Na verdade, os homens se deram a si próprios todo o bem e todo o mal. Na verdade, não o receberam, não o encontraram, não lhes caiu como uma voz do céu. O homem é que pôs valores nas coisas, a fim de se conservar. Foi ele que deu um sentido às coisas, um sentido humano".
Ou seja, foi o homem quem criou os valores morais, a partir de seus interesses e a fim de se conservar; são produtos da história humana. Os valores "bem" e "mal" têm uma origem e história. O "bem" e "mal" não caíram como uma voz do céu, não foi dado ao homem, não existiu desde sempre- então Nietzsche conclui que não há noções absolutas de "bem" e "mal"; assim ele nos mostra que, contrário ao que supomos, o bem nem sempre contribui para o prosperar da humanidade, nem o mal para sua degeneração.
Ao repensar a natureza de valor, acaba abençoando o que até então era maldito e amaldiçoa o que até então era abençoado. Amaldiçoa: a compaixão, o amor ao próximo, a divisão corpo/alma, o padre, a igualdade... Ele está descendo seu martelo aos valores mais caros, que nortearam, e ainda norteiam, a civilização ocidental; está "quebrando as antigas tábuas de valores". Esta obra é, talvez, uma das maiores críticas já feita aos valores ocidentais- pode ser compreendido como a mais profunda recusa dos valores e ideais do homem moderno.
"Porque os criadores são duros. E deve-nos parecer beatitude imprimir vossa mão em séculos como em cera branda, e escrever sobre a vontade de milênios como sobre bronze, mais duros que o bronze, mais nobres que o bronze."
Nietzsche aqui salienta a destreza com que se deve manejar o martelo, é importantíssimo ter forças para quebrar os ídolos- mas apenas com o fim de criar novos valores, de "escrever novos valores em novas tábuas". - Temos aqui a ideia de desconstrução: não estando preocupado em discutir a validade das deduções dos adversários, mas sim de quebrá-las pela raiz.
"Quase no berço ainda nos dotam de pesadas palavras e pesados valores: "bem" e "mal", assim se chama o patrimônio. E nós arrastamos fielmente aquilo com que nos carregaram sobre duros ombros e por áridos montes! Se suamos, dizem-nos: "É verdade, a vida é uma carga pesada!"A única coisa pesada, porém, para o homem levar é o próprio homem! É que carrega aos ombros demasiadas coisas estranhas. Como o camelo, ajoelha-se e deixa-se carregar bem" [...] "Mas aquele que diz: Este é meu bem e meu mal, esse descobriu-se a si mesmo. Com isso faz emudecer o míope e o anão que dizem: "Bem para todos, mal para todos".[...]
" Este é agora meu caminho. Onde está o vosso?" Era assim que eu respondia aos que me perguntavam "o caminho". O caminho, de fato, o caminho não existe!".
Zaratustra, diferente dos profetas convencionais, não quer discípulos nem seguidores, quer aliados, por isso, quando chegar determinado momento, será necessário seguir com as próprias pernas. A leitura de Zaratustra deve guiar para a liberdade, tornar-se senhor de si mesmo, os ensinamentos dele servem para apontar caminhos possíveis- "A solidão é o caminho que te guia a ti mesmo"; "Antes ser louco por seu próprio critério, do que sábio segundo a opinião dos outros"
O livro trata, de forma densa, de temas que estão presentes em toda sua obra, assim como apresenta novas ideias. Cada capítulo nos leva a uma profunda reflexão. É uma obra bem hermética, então pode receber muitas interpretações diferentes, também por isso é uma rica fonte para se apropriar
Observação: A obra é dividida em quatro livros, e Nietzsche pretendia acrescentar mais dois, porém ele perde a razão em 1889 e acaba não fazendo, e também deixa alguns conceitos inacabados- como a vontade de potência e o além-do-homem.