Arsenio Meira 04/07/2013
O OUTRO LADO DA MARGEM
Já conhecia todos os poemas escolhidos para esta edição comemorativa. Mas não importa.
De Mário Quintana, Paulo Mendes Campos reconheceu que, por amar tanto a poesia do colega gaúcho, os versos nem precisariam estar “impressos em tinta e papel: eu os carrego de cor, e às vezes brotam em mim como se fosse meus”.
Aclamado pelo público, pouco conceito angariou pela crítica (o que demonstra o grau de estupidez da dita-cuja), talvez porque tenha sido o poeta das reticências ou pouco inclinado aos temas dito profundos ou pseudo-profundos, ou ainda, desligado das panelinhas literárias, esfera ideal para alguns embusteiros e calhordas.
Mário Quintana era um homem avesso a ênfases – no escrever, no falar, no proceder. Mas escreveu sobre temas banais e não-banais e conseguia extrair de todos os cálices uma dimensão mais ampla, transformando essas vivências em metáforas com entonações simples e significados belíssimos, todos providas de uma substância sensível e acolhedora.
O livro "80 anos de Poesia", uma seleção que abrange poemas pinçados de todos os seus livros, em bem apanhada edição da editora Global, nos remete à conclusão de que em termos de tema e tom, predominam recortes pungentes de cenas urbanas em registros irônicos ou sutis, enquanto em termos formais domina o prosaísmo coloquial de extração modernista, com exceção dos seus deliciosos sonetos, tão ao gosto de um neo-simbolismo mais abonador do que depauperado.
Queiram ou não queiram os críticos, jamais faltará mérito a Mário Quintana. A possibilidade da hecatombe nuclear, como não podia deixar de ser, sensibilizou o Poeta, gerando vários poemas. Poesia é emoção inteligente, ou inteligência emocionada.
Mas não se trata aqui, bem entendido, de exigir que o poeta só se refira a grandes temas ou episódios, menosprezando os outros – uma formiga trazendo o frêmito da vida à página em branco era um poema para Quintana, quanto um mosquito fazendo sombra de lira em outra, era também material poético para Vinicius – pois se o Poeta é a antena da raça, ao público leitor os temas não tem índice, abordagens e formas.
Em Quintana, uma das surpresas é a exclusão voluntária a que o poeta se submeteu, como se isso pudesse atrapalhar a sua poesia ou como se ele não estivesse preparado para abordar poeticamente assuntos mais complexos, superando, assim, a província com a qual vivia e conviva extraindo dela também forte aparato para sua poesia.
Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente…
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda gente,
Nem é deste Planeta… Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal…
E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda…
Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!
Ele tinha o gosto pela matéria simples da vida, traço que marcaria toda a trajetória do grande poeta gaúcho.
A poesia de Quintana é a humanidade posta em verso.
Daí seu humor não apresentar o traço racional, intelectualizado (o que talvez explique a birra da crítica), e que traduz uma visão chapliniana do mundo, não distanciada da que teria o homem comum.
Em permanente “estado poético” Quintana não escolhia assunto: todos lhe serviam, tudo era lirismo poético na sua percepção feiticeira.
E, convém não esquecer que é de sua lavra uma das mais belas, gigantes e suscitas definições do relacionamento amoroso:
“Amar é mudar a alma de casa.”
Ao fazer poesia como quem respira, Quintana não se situa, como poeta, acima dos demais ou fora do mundo.
Ao contrário, sendo um entre outros (“Eu nada entendo da questão social./ Eu faço parte dela, simplesmente…”), como dirá, ele se dilui no contexto geral.
Assim, o social, em Quintana, não está designado pelo poema: é o poema. Portanto, mesmo que tenha tentado excluir-se dos temas sociais, ele não conseguiu.
Em determinado dia, Quintana declarou: “Pertencer a uma escola poética é o mesmo que embarcar num barco que pode ir ao fundo, quando esta escola sair da moda. O melhor é cada um no seu barquinho, e talvez alguns consigam chegar à outra margem. Isto é: à posteridade”.
Ele, com seu barco imenso de poemas, não precisou da crítica e conseguiu chegar do outro lado da margem.