Hermes 02/04/2014
Bom livro
O Sonâmbulo Amador, romance escrito por José Luiz Passos, chega com a credencial de ser o ganhador do prêmio literário Portugal Telecom do ano passado. Não li os outros livros finalistas, mas me parece que a escolha foi justa. É um bom livro; nada extraordinário, mas é um bom livro.
O livro nos mostra a vida de Jurandir, funcionário de uma fábrica de tecidos, que, tendo a missão de ir a Recife com o propósito de tratar de um caso jurídico envolvendo a empresa, acaba internado numa clínica psiquiátrica. Jurandir é um sujeito discreto, reservado, meio ranzinza, e tem considerações bem particulares a respeito dos seus sonhos; ele gosta de lembrá-los, contá-los às pessoas e de transcrevê-los. Incentivado pelo psiquiatra, ele resolve escrever suas memórias e relembra os momentos que passou ao lado da mulher, da amante, do filho e do amigo de infância.
A narração é uma constante ida e vinda. Vai ao passado distante, ao recente e volta ao presente; e, no meio de tudo isso, encontra-se o relato dos sonhos; tudo junto e misturado. Com efeito, não se pode estar desatento ao ler a obra, sob o risco de se perder na passagem de um relato ao outro, ou de perder pistas que o autor vai deixando no caminho, mas também não é necessário um esforço sobre-humano de atenção para acompanhar a história. O autor foi bastante competente no uso dos diferentes tempos para contar as memórias de Jurandir e manteve total domínio da narrativa do início ao fim do livro, não deixando, assim, o leitor escapar.
Mas claro que essa opção de misturar diferentes tempos traz outro risco além daquele de levar o leitor a se perder durante a leitura. Outro risco é de entendiá-lo com a repetição de trechos da história ao longo da narração, uma vez que alguns fatos têm que ser relembrados constantemente, quando se vai ao passado ou se retoma o fio da meada no presente. Essa repetição ocorre em O Sonâmbulo Amador, mas em pequena escala; nada grave.
O livro é bem escrito, a leitura é prazerosa; os personagens são interessantes e bem construídos. Deparamos, ao longo do texto, com alguns pensamentos ricos, como, por exemplo, quando Jurandir fala das lembranças: "O corpo parece que traz, na memória dele, as chaves para um estalo qualquer contra essa lei mais constante e diária, que é a mortificação. O mais impressionante é que isso não pode ser calculado nem resgatado por mera vontade. Conta mais, nestes casos, a presença de alguém que nos ajude a soprar, casualmente, o braseiro inconsciente da esperança." Por tudo isso, posso dizer que O Sonâmbulo Amador se constituiu numa boa experiência de leitura.
E os problemas? Encontrei alguns no livro. Um deles é que o autor cria muita expectativa em torno de algumas situações, mas essas, ao final, não se resolvem com a intensidade esperada. (Se alguém quiser discutir esses pontos, podemos fazer nos comentários, que é para não adiantar nada para ninguém). Por conta disso, achei que, na sua última parte, o livro perdeu força e desembocou num final morno.
Outro problema é que algumas passagens da trama, decisões e reações dos personagens ficaram sem sentido para mim. Sei que o didatismo é ruim; enrola a história e entendia a leitura; além disso, tira do leitor a chance de pensar e tentar, por si só, achar explicações para os fatos; mas achei que ele poderia ter explicado melhor alguns trechos. Inclusive os tais dos sonhos, que não tiveram um significado claro para mim. Queria entender o significado que vai além da interpretação de que se trata dos conflitos reprimidos do protagonista. Talvez esses buracos sejam propositais, uma vez que o personagem, em muitas ocasiões, não se lembra bem dos acontecimentos. De qualquer maneira, o autor nos entrega pouco, de modo que é necessário buscar com atenção as peças que estão soltas e montar o quebra-cabeça; e, mesmo assim, ao final, não temos a certeza se o que entendemos é aquilo que o livro queria passar.
É um livro desafiador, que nos obriga a pensar para desvendar o protagonista bem como entender as intenções do autor. A meu ver, Jurandir não sabia lidar com suas frustrações pessoais e, por isso, comete um ato insano que o leva ao sanatório. Reproduzir no papel suas memórias aparece como solução para lhe garantir certo equilíbrio.
site: http://garrafadacultural.blogspot.com.br/2014/03/o-sonambulo-amador.html