Rolando.S.Medeiros 22/12/2021
O Ultimo Desejo — The Last Wish — Análise Minuciosa Conto a Conto
No Continente (O mundo de The Witcher não possui nome), a magia é uma força sempre presente, mas não comum à maioria das pessoas. Ela tem ares de superstição e é vista com más olhos. Monstros que precisam ser mortos, maldições que precisam ser quebradas, feitiços que precisam ser desfeitos, essa é a rotina de trabalho de um bruxo.
Capazes de feitos absurdos, eles são temidos e usados como ferramenta conforme necessário. Cada bruxo tem seu próprio código, mas algo comum a maioria é que eles costumam não se meter na política dos reinos. O que não é o caso do Geralt, que apesar de sua neutralidade inicial, não consegue ficar isento à maior parte dos problemas que testemunha em suas viagens. (Isso é muito bem adaptado pela CD Projekt em um CG do Witcher 3, Killing Monsters.)
Geralt divide suas capacidades e conhecimentos com os humanos por um preço, paga esse preço sendo odiado, exilado socialmente e ilhado moralmente. É temido e evitado, já que a maior parte das pessoas sente aversão da mera presença dele e o veem como uma figura mitológica perigosa, quase que amaldiçoada.
Ele é um excepcional estrategista, mas como todo humano, comete erros. Apesar do planejamento meticuloso, nem tudo sempre sai como queria, e se ele alcança a vitória, guarda a alegria para si próprio. Ele é imperfeito, mas extremamente profissional no seu trabalho.
Outro ponto a ser destacado é a dicotomia dos monstros que ele enfrenta. Eles são complexos, com motivações válidas ou apenas vítimas do mundo. Nivellen e a Estrige são dois exemplos perfeitos de como há camadas dos monstros a serem descobertas pelo leitor e pelo protagonista. Ainda há outros menos desenvolvidos, mas que servem bem para deixar a história de Geralt com tons de cinza, que forçam o leitor a tomar partido pelo que acredita ser melhor, se igualando a Geralt, já que ele é forçado a fazer isso constantemente, enquanto desafia a sociedade, a magia, os monstros, as leis e a morte. Andrzej consegue moldar magistralmente o protagonista e suas emoções. Lendo com atenção, é possível enxergar como Geralt sente cada baque da vida diante de ele ser o que ele é — um ''mutante'' —, e como ele evolui ao longo da série.
Outro ponto a se elogiar são os diálogos, para mim o Andrezj é exímio nisso, e isso fica claro para quem leu o conto do Nivellen. Seco, direto, chulo, reflexivo, ofensivo; tudo isso auxilia em deixar o dialogo mais interessante e natural.
A abordagem da religião também é interessante, mas, ao mesmo tempo, curiosa, já que a própria existência dos monstros seria uma heresia. Outra ironia é que o Geralt tem sua dose de incredulidade, mesmo que veja a magia intimamente, seja na forma dos monstros que enfrenta, ou dos sinais que utiliza. E apesar disso, crer em deuses é algo que ele não concebe. Ele debocha, ignora e até mesmo discute alguns temas religiosos. O que é bastante irônico.
Vou tratar de cada conto singularmente nas próximas partes, mas dando uma pincelada em todos, o nível da qualidade, das variações dos temas, e do domínio com que cada seguimento é trabalhado é incrível. Ação, terror, horror, thriller, pitadas de gore, contos de fada renovados, comédia onde as conversas ácidas e até mesmo as cenas de ação são feitas para você dar risada, tem de tudo aqui.
Outros pontos positivos vão também para a descrição da exploração política, a moeda e seus valores entre os povos, mudanças nos paradigmas sociais nas formas que se enxergam os monstros, racismo e xenofobia; toques machistas que refletem o pensamento daquele tempo, enquanto, por outro lado também há a busca das mulheres por serem protagonistas de si mesmas. Monstros como cortina de fumaça para a maldade do homem também é desenvolvido como assunto banal aos personagens, deixando ao leitor tirar suas próprias conclusões. Andrzej não negligencia nenhum tema, convidando o público a ter uma experiência literária completa tirando-o da zona de conforto, com temas pertinentes e atuais.
Os contos de Andrzej, junto com seus interlúdios, desenvolvem seus temas e seu protagonista de forma bastante eficiente, explorando os defeitos da natureza humana e suas consequências. Cada conto é um universo próprio, de plot, referencias, worldbuilding e personagens.
A Voz da Razão I: Essa introdução, nomeada pelo Andrzej de ''A Voz da Razão'' foi uma forma literária que ele encontrou de amarrar todos os contos, que inicialmente foram escritos separadamente, dando uma lógica a eles. Os contos funcionam como as memórias de Geralt durante a sua estadia no templo de Melitele, a Voz da Razão é na realidade o ''presente''.
Esta primeira parte serve para expor uma das principais características do personagem, que foi mais elevada nos jogos: O bruxo deixando-se aproveitar dos prazeres da carne. Descansando no templo da deusa Melitele, em uma manhã de sol, ele é surpreendido pela jovem Iola, e ambos tem uma relação sexual. Uma parte interessante dessa relação, é que o Geralt está sob o efeito de várias ervas medicinais, e ainda meio grogue. O destaque ao cheiro de camomila que ele sente durante o ato não é atoa, Geralt está sonhando, mas não com Iola, e sim com o Yennefer, por isso o destaque no cheiro, que deveria ser de Lilás e Groselha. Um foreshadowing bastante interessante.
E fica um aviso aqui, a obra do Sapkowski é repleta de misoginia, mas, a abordagem dele é crítica, ele usa e expõe desta cultura para criticar, como veremos em alguns contos desse livro, e como é visto aqui, Geralt se envolve com várias mulheres, projetando nelas a figura de uma outra mulher. Iola aqui, quis estar com Geralt, e talvez fosse até fosse uma parte do tratamento do Templo. Mas, o fato de uma pessoa querer não retira a responsabilidade de alguém no ato e nas consequências do mesmo.
Tanto é que Geralt percebe a situação, o que aconteceu e sente culpa. Ele olha para Iola e se ressente porque ela não era a Yennefer. Percebe o quanto isso era injusto, aquilo pode deixar marcas na garota. E é disso que se trata. Quando se sabe que algo pode ser danoso para uma pessoa, mesmo que ela queira, é digno conversar e tentar fazê-la perceber algo que, provavelmente, ela não está conseguindo perceber sozinha.
As sacerdotisas de Melitele não são impedidas no que diz respeito à sexualidade, ela é a deusa da fertilidade, do parto. Qualquer uma delas é livre para servir a deusa ou deixar de servir. A qualquer momento. Qualquer uma é livre para decidir com quem se deita. Iola fez uso deste direito, que cabe a ela. Mas, isso não quer dizer que não haverá nocividades nas escolhas delas, porque elas são, em sua maioria jovens. A responsabilidade cai sob Geralt.
O Bruxo: Começando de fato, o primeiro conto nos leva a um reinado chamado Vizíma, que tem bastante influência política na região e um grande problema para resolver: a algum tempo, uma maldição fez com que a princesa recém-nascida se transformasse em uma estriga. Aqui o trabalho do bruxo consiste em tentar desfazer a maldição, mas sem matar a princesa. É possível sentir o clima soturno que envolve o castelo abandonado onde está o sarcófago da estriga.
Esse conto apresenta o personagem e seus métodos. A estriga — uma besta enorme que mede quatro côvados, lembra uma barrica de cerveja, tem uma bocarra que vai de orelha a orelha e é cheia de dentes afiados como estiletes, olhos vermelhos e cabelos ruivos. — é extremamente perigosa. Muitos outros, até mesmo bruxos, haviam tentado e falhado.
Ele também não aceita a missão só porque tem bom coração, fazendo questão do pagamento ser prontamente acertado com antecedência. Sua cautela e investigação também é mostrada de modo eficiente: o leitor observará o protagonista estudando o ambiente e o caso que tem a frente. Preparando poções que modificam suas feições e traços fisiológicos para completar aquela tarefa específica. Como a luta era a noite, em um castelo abandonado, uma poção que dilata sua pupila ainda mais (ele já possui olhos de gato normalmente) e o faz enxergar perfeitamente no escuro é extremamente útil. Uma característica de seu combate também é mostrado, ele costuma girar em torno de seus inimigos, estudando seus padrões, para enfim definir a luta em alguns poucos movimentos rápidos e impetuosos (na teoria, já que no caso da estrige, Geralt comete alguns erros e é duramente castigado por isso.)
Para mim uma das coisas mais interessantes nesse conto é a questão da Estriga, que apesar de ter devorado muitas pessoas, não seria um adversário tão complicado para o Geralt derrotar com a espada, porém, ela é a filha do Foltest, ele não pode simplesmente mata-la. Há o próprio sentimento do Geralt em jogo ao descobrir mais sobre a história da maldição da Estriga, com todo seu conhecimento de maldições e feitiços, ele sabe que tem uma jovem inocente ali no fundo. E tendo lido todos os livros, creio que mesmo que ela não fosse filha do Foltest, fosse a filha de um camponês qualquer, o Geralt não a mataria e tentaria desenfeitiçá-la igualmente.
Neste conto vemos também todo tipo de interesse em relação à Estriga, ela devorou de dezenas a centenas de pessoas durante os anos que se passaram, mas o Foltest ainda a quer viva, é a sua filha com o amor da sua vida, sua própria irmã. Ostrit não quer que nada mude ou seja resolvido, já que com as mortes continuando a acontecer pelas mãos da estrige, seria mais fácil depor o Rei. Velerad e Segelin ''apoiam'' o Rei, mas sabem que se o Geralt fosse embora as mortes continuariam acontecendo, e decidem tentar subornar o Geralt, assim como outros que vieram antes dele, a forçar um ''acidente de trabalho''
Expor os lados sombrios da humanidade é um tema comum ao longo da série e introduzi-lo logo no primeiro conto, já define o tom do resto das histórias. Não é uma história só sobre a caça de monstros, quotando o próximo livro: é algo mais.
O que esse conto também faz é introduzir a natureza estoica de Geralt de Rivia. Como é curta, não há nada sobre quem ele era, apenas o esboço básico do que é ser um Witcher e porque eles são frequentemente odiados pela sociedade em geral. Sua excelência está na simplicidade, que apresenta aos leitores o mundo, o sistema e o personagem principal ao mesmo tempo que conta uma história simples e sólida, mas incrivelmente humana. Com certeza uma das melhores introduções de personagem que já li.
A Voz da Razão II: Aqui fica claro que Geralt estava em transe quando teve a relação com a Iola, e sente-se culpado e envergonhado. E por meio do arrependimento, fica implícito que apesar de ele estar grogue e pensar na Yeneffer, no fundo ele sabia sim que se tratava de outra pessoa, o que não o isenta da culpa.
Essa é uma característica ruim do personagem, da pessoa Geralt de Rívia que merece ser destacada. Ele no fim é um ser humano falho como todos os outros, não é perfeito. E a relação que ele possui com as mulheres merece ser criticada, a forma como ele as usa, e as objetifica, para lidar com as frustrações que tem com a Yennefer. Esse interlúdio expõe isso.
Um Grão de Veracidade: Desbravando uma trilha na floresta com Roach, Carpeado, ou Plotka, chame como quiser o cavalo do Bruxo, ele descobre dois cadáveres, um mercador e uma jovem. Ele é atraído por um detalhe incomum, uma rosa azul presa na roupa da moça. Um jardim com as mesmas flores cresce em um castelo abandonado próximo dali. O resto já é sabido por vocês, que leram o conto.
Aqui o conto mostra uma grande qualidade do autor de elevar os contos de fada ao limite, e transforma-los em algo novo e refrescante. O monstro não é um monstro, e até mesmo o clichê do amor verdadeiro é refeito e revisitado de modo belo e trágico. Nivellen tentou se apaixonar por várias mulheres, mas muitas delas eram atraídas pelo poder mágico que acompanha sua maldição, e não por ele próprio. Andrzej emprega uma ótima reviravolta nesse conto, pois o amor verdadeiro que quebra a maldição no final da história provém de um monstro.
Vereena controlava Nivellen, os pesadelos dele, não eram pesadelos, eram lembranças, ela o controlava para matar as pessoas que passavam por lá. E por pura crueldade, já que quando Geralt encontra os corpos, eles estavam super ensanguentados e dilacerados, então parece que Vereena realmente não queria se alimentar deles, mas apenas matá-los por prazer.
No fim, Nivellen percebe isso, por isso a mata, mesmo sabendo que ela o amava (um senso distorcido de amor, talvez, já que ambos são monstros) e mesmo após Nivellen apunhalá-la no peito, ela continua amando-o, se não fosse o caso, a maldição não seria quebrada. ''Meu. Ou de ninguém. Amo-te. Amo.'' Tanto que depois dessas palavras, ela tenta levá-lo junto com ele.
Eu adoro o Nivellen, ele é um ótimo personagem, divertido e interessante. Adoro a disparidade entre sua qualidade monstruosa e seu temperamento bastante dócil. Mas há uma discussão que deve ser feita, ele estuprou uma sacerdotisa inocente, depois disso ele realmente merecia ser curado da maldição? Bem, eu tenho minha própria opinião, que não.
Ele não merecia ser curado da maldição. Todas as pessoas que se arrependem merecem uma segunda chance, mas quando o Nivellen conta a história para o Geralt, não parece que ele sente vergonha ou arrependimento do que fez. Não chegamos a ver nenhum remorso da parte do monstro em relação ao que ele fez com a sacerdotisa que estuprou; o pesar que ele sente é apenas em relação a ele mesmo (Nivellen está longe de ser altruísta). O resultado das ações (a maldição que a sacerdotisa colocou nele) parece ser para ele um inconveniente maior do que a ação que ele fez em sí, entendem?
Ele preocupou-se mais com a maldição do que com o fato de ele ter estuprado uma sacerdotisa inocente (mesmo que tenha sido sob pressão). A história, na minha opinião, tinha que terminar com a morte de ambos, tanto Veereena quanto Nivellen. O Geralt ao ouvir o relato, demonstra apatia porque isso normalmente é típico e esperado dele. Estuprar é algo que o bruxo não faria e despreza, e se a cena estivesse acontecendo em sua frente certamente iria tentar impedir. Mas, ao mesmo tempo, ele não age como um cavaleiro justiceiro que pune os malfeitores, na maior parte do tempo ele procura não se envolver. No início da obra, Geralt era excessivamente neutro em relação a tudo, e isso só muda mais adiante na obra, quando algumas questões relacionadas a Ciri colocaram ele na parede e ele precisou tomar decisões.
É um mundo sombrio, a maioria dos contos e acontecimentos deixam o leitor com um gosto amargo na boca.
A Voz da Razão III: Logo nesse inicio, já temos algo bastante interessante. Falwick e Tailles, cavaleiros a serviço do Regente de Ellander, servindo como alegoria a intolerância religiosa e ao racismo. Percebe-se isso pelo jeito como entram no templo, e em também como eles olham para Geralt e para Nenneke. Esse dois também pertencem á uma ordem corrupta, onde os cargos são comprados, e não recebidos por mérito.
O que é interessante aqui, é em como pessoas se apoiam em seus representantes, e utilizam isso como uma base para violentar e perseguir pessoas ou crenças diferentes. Se dependessem desses dois, eles ateariam fogo no templo e passariam na espada todas as pessoas ali dentro. Outro paralelo com a vida real.
O Mal Menor: Um dos contos mais sombrios e aclamados do livro.
Nele vemos a introdução de como a profissão de Bruxo não é uma profissão luxuosa e fantasiosa, Geralt bota em risco sua vida por migalhas, e nesse caso em específico, não recebe nem as migalhas. Como não há trabalhos, ele próprio tenta arrumar trabalho, matando uma Kikimora e levando-a até o Intendente de Blaviken, um conhecido seu. Mas não há demanda pela Kikimora, o que faz com que ele passe mais um dia sem dinheiro.
O Intendente inicialmente se esquece, mas logo lembra que eles conseguiram recentemente um feiticeiro para a cidade, e sugere que Geralt leve a Kikimora até o feiticeiro. Logo Geralt descobre que como ele havia pensado, o Feiticeiro não tem interesse na Kikimora, e é um velho conhecido seu, de quem ele não tem muito respeito e conhece a índole não muito boa. O Feticeiro chama-se Stregobor, e se esconde na torre com o nome do criador e arquiteto daquele local, Mestre Irion.
Aqui nos é apresentado como os Feiticeiros são dissimulados, hipócritas, caras de pau e interesseiros. Stregobor é um mago especializado em meteorologia e ilusionismo, e em Blaviken, uma cidade portuária, ele é quase um deus para as pessoas, podendo afastar tempestades, atrair cardumes, e muitas outras coisas.
Mas ele não faz isso porque quer ajudar, ele faz isso para acumular alguma coisa, seja riqueza e/ou poder. É semelhante à vida real, em cidades pobres com pessoas humildes, sem acesso à educação e bastante acostumadas em viver na miséria, quando aparece alguém fazendo milagres, ajudando-as, elas naturalmente irão colocar aquela pessoa em um pedestal, mesmo que a mesma possua interesses ocultos, e é o que acontece com Stregobor em Blaviken, o povo o adora, o cultua, e ele explora isso, ele se esconde atrás do povo.
Uma antiga profecia chamada de Maldição do Sol Negro leva o Capítulo da Magia adotar uma medida drástica: caçar, aprisionar, torturar e matar jovens mulheres que tenham supostas ligações com a profecia, mesmo sem provas de bons resultados dessa ação, tudo na tentativa de evitar o que eles consideram um futuro catastrófico. O Capítulo da Magia é a instituição mais antiética e perversa do mundo de The Witcher. Ela chega a ser ainda mais vil que as monarquias porque além de poder, ela goza também de muito conhecimento, utilizado apenas para atender seus próprios interesses.
Stregobor a ilustra muito bem: para Ban Ard, ele é um feiticeiro eficaz. Mas para qualquer configuração de mundo digno, ele não passa de um torturador cruel e assassino. Stregobor não pensa diferente de torturadores históricos, a exemplo de Josef Mengele, que fazia experimentos com crianças judias em Auschwitz. E estes monstros (tanto da realidade quanto da ficção) são exemplos nítidos do porque é tão importante a ciência estar sempre acompanhada da ética.
Outro ponto a favor é a interessante história sobre a maldição e a explicação de como os magos se comportam (ambiguamente) nestas situações. O porquê dessa perseguição e o destino dos personagens é um ensaio sobre a natureza do mal. Outra vez tem referências aos contos de fada; os anões são assassinos, e a princesa é uma revolucionária que ameaça matar dezenas de inocentes. Esta é uma história destinada a abalar o ponto de vista moral do personagem, já que o clímax envolve um massacre em Blaviken, fazendo parecer que Geralt é o responsável.
O que muitas pessoas também não se atentam, é que o dilema principal nesse conto, não é se Renfri é um ''Monstro'' desde o nascimento, como explicarei mais abaixo — ela pode até ser — mas, sim o que fez ela se tornar o que ela é.
Para o Capítulo da Magia, Stregobor pode ter agido segundo o protocolo; entretanto, este protocolo é desumano, cruel e completamente antiético. Stregobor foi eficaz? Sim. Mas sua eficácia serviu a interesses vis e nada humanísticos. Ele é tão torturador e assassino da mesma forma que é mago e pesquisador: são coisas que são indissociáveis nesta equação; elas não se excluem ou se redimem, apenas deixam ainda mais claros os interesses dele e de trastes como o Etibaldo. É bom lembrar que Etibaldo, ao pesquisar as mutações segundo a profecia do Sol Negro, estava longe de ter pensamentos do tipo "vou salvar as famílias, evitar o mal ou consequências calamitosas". Ele matou porque queria aprender. Ele matou porque esperava descobrir algo que lhe desse prestígio e poder.
A predisposição de Renfri para o mal, foram causadas pelas mutações e pelo meio social (ambos geraram influências). Claramente sua fisiologia possuía traços anormais, mas há de se levar em consideração que as condições de vida e o ambiente de violência colaboraram e muito para aflorar ainda mais aquilo que já apresentava uma tendência para a agressividade. Um exemplo tradicional do mundo de The Witcher, são os trolls. Em tese eles seriam monstros bárbaros, certo? Mas alguns se tornaram civilizados, aprenderam a reprimir o lado bestial e a serem funcionais (trabalhando até como vigias ou reparadores de pontes). Ter uma propensão não significa, necessariamente, que você irá desenvolvê-la: depende de algo chamado condicionamento (como ensina teóricos comportamentais, como Pavlov e Skinner). Renfri poderia ser um monstro, como poderia não ser. A pergunta é? O que foi feito para ajudá-la a não ser? E o que foi feito para que fosse um monstro? Pese os dois na balança e teremos um resultado.
Se a mutação dela já indicava desvio de personalidade, o flagelo que ela recebeu de Stregobor e de sua Madrasta não ajudou em nada para mudar isso. No mínimo, intensificou os sintomas. Os feiticeiros e a coroa fizeram algo realmente preventivo? É óbvio que não. Ambos estavam apenas atrás de seus próprios interesses. Portanto, não tem nenhuma vítima nessa história.
No fim, ficar do lado do Stregobor ou da Renfri seria fazer um mal de qualquer jeito. Ser um Mal maior ou um mal menor, é na verdade outro desvio moral, porque se trata de uma relativização do sofrimento alheio. Para o Stregobor, matar a Renfri é o mal menor. Mas para a Renfri, matar o Stegrobor é o mal menor. A questão é que não vemos "menor" ou "maior" em nenhuma das situações: o que vemos é apenas um narcisismo, um interesse pessoal que tenta diminuir a desgraça alheia, medindo-a com uma régua. Representa falta de empatia. O mal só é "menor" porque não é com eles.
Mais uma vez, o conto é desgraçado demais, ele acaba de forma muito trágica e o que resta para o Geralt e para o leitor é apenas recolher os cacos espatifados.
No fim, para mim, Geralt é o menos culpado da história toda: ele tentou evitar a tragédia o máximo possível. Na boa? Não tinha como essa história acabar bem, ia dar merda de qualquer jeito. Infelizmente, os mais prejudicados foram Renfri e Geralt, enquanto o Stregobor fica sem o corpo dela para pesquisar, mas fica sossegado (nada além acontece com ele). E isso deixa um gosto amargo na boca. Mas ler Witcher é isso, né?
A Voz da Razão IV: ''Eu preciso desta conversa. Dizem que o silêncio vale ouro. Talvez, mas não acho que seja tão valioso assim. De todo modo, tem seu preço e deve-se pagar por ele. Para você é mais fácil; sim, não negue. Afinal, o fato de se manter em silêncio é fruto de uma escolha sua; você fez de seu silêncio uma oferenda a sua deusa. Não acredito em Melitele, tampouco na existência de outros deuses, mas dou valor a sua escolha e aprecio e respeito aquilo em que você acredita. Porque sua fé e seu sacrifício – o preço que está pagando pelo silêncio – fazem de você uma pessoa melhor e mais valiosa. Pelo menos podem fazê-la assim, ao passo que minha falta de fé nada pode, é impotente.''
A Voz da Razão IV é incrível. O diálogo, que, na verdade é um monólogo, deve ser um dos melhores de toda a saga. É aqui onde pela primeira vez Geralt explica seus sentimentos e se desculpa com Iola, além de transcorrer por diversas outras características da sua pessoa. Nesse momento ele só precisa de alguém para conversar; é como a confissão de um não-religioso.
Geralt também fala sobre Kaer Morhen e Vesemir com bastante sentimentalismo, e até o chama de pai. Nesse contexto, também descobrimos porque Geralt tem cabelos brancos. Como ele aparentemente era um garotinho especialmente resistente, os bruxos o escolheram para experimentos adicionais. Isso significa que ele é de alguma forma superior ao bruxo "normal".
E aqui torna-se aparante que não foram as experiências fisiológicas que o tornaram frio e cínico, e sim os acontecimentos que presenciou no mundo. Por exemplo, ele fala sobre sua primeira vez exercendo o papel de bruxo, e também sobre Blaviken, e porque escolheu atacar o bando de Renfri. Ele se defende, mas parece acreditar que estava escolhendo o mal menor, em vez de ouvir a voz da razão que lhe dizia apenas para ficar fora disso.
E esse é um conflito central que permeará a maior parte das histórias do Bruxo: seu código diz a ele para ficar fora de tudo que não seja seu trabalho, mas, com frequência, seus ideais suprimidos ressurgem e ele tem de se por em ação.
Uma Questão de Preço: ''Os reis dividem as pessoas em duas categorias: aqueles às quais ordenam e aquelas a quem compram. E sabe por quê, Geralt? Porque eles acreditam piamente numa antiga crença banal: a de que qualquer um pode ser comprado. Qualquer um. É apenas uma questão de preço."
É bom começar destacando o inicio do conto, simples e inteligente: ''O bruxo tinha uma faca encostada na garganta.'' Vindo de toda a ação, e sabendo que o Geralt não consegue ficar longe de confusão, você já pensa ''meu deus lá vamos nós de novo'', mas aí vem a continuação, e a explicação: Geralt está apenas fazendo a barba. Ele se arruma com roupas pomposas das quais não está acostumado, toma a identidade falsa de ''Ravix de Fourhorn'' e se pergunta qual será o motivo de tudo isso. O Castelão menciona um ouriço que assombra o castelo, mas Geralt é astuto e não acredita nele.
Estamos na corte de cintra, governada pela Leoa Calanthe. É oferecido um jantar para nobres e cavalheiros de reinados próximos como uma oportunidade de conhecer a princesa Pavetta. O objetivo é oferecer a mão da jovem ao candidato que trouxer mais vantagem para o Reino de Cintra. A missão de Geralt, é secreta, e um pedido da própria rainha.
É a clássica história de intriga palaciana, mas, como tudo feito pelo Andrzej, ganha ares novos e refrescantes. No conto anterior tivemos a participação de magos e maldições, nesse temos uma amostra dos poderes naturais de um Xamã e de uma Fonte (Pavetta). Algo digno de nota é a tensão crescente, e o clima de suspense, uma vez que o Geralt não sabe para que foi contratado, sua única orientação é ficar atento e agir rápido.
A conversa entre Geralt e Calanthe, e o desenvolvimento dos dois ao longo conto é bastante interessante. Ambos começam não se respeitando, o bruxo suspeita desde o início que ela está tentando usá-lo como um assassino, porque é isso que reis ou outros nobres costumam fazer, e conclui prematuramente que ela quer que ele mate algo só porque essa é sua experiência com reis. Calanthe, por outro lado, tem o Bruxo apenas como uma ferramente que ela pode usar, mais uma pessoa que pode ser comprada. Gradualmente, ambos vão mudando suas certezas e opiniões. Nem entrarei em detalhes de como a Calanthe é superior e mais inteligente no livro do que na série, onde ela fora trarnsformada em uma "mate todo mundo porque eu sou a rainha forte!".
Geralt e Calanthe continuam a conversa, e a Rainha dá a entender que existe algum tipo de força do destino que ameaça seus planos, e Geralt reage dizendo "Um bruxo lutando contra o destino! Que irônico". E essa linha em si é realmente irônica, já que ele próprio passará muito tempo lutando contra seu próprio destino nos livros seguintes.
A parte final é um ''todos contra todos'' divertido, e construído levemente até uma linha final excelente. A história termina com tudo se revelando uma falha de comunicação e quase que uma comédia de erros.
Em suma, é uma das histórias mais importantes deste livro, tanto em tema quanto enredo. Uma Questão de Preço introduz o tema central da obra, a luta contra o destino, é o ponto de partida de tudo, emaranhando-se diretamente com o próximo livro, já que aqui o destino de Geralt foi entrelaçado com a futura filha de Pavetta, embora ele ainda não acredite nisso totalmente.
Os Confins do Mundo e A Voz da Razão 5 – Sapkowski em alguns contos brinca com diversos contos de fadas universais, moldando-os e deturpando-os para que sirvam de alguma maneira para sua história. Mas também trás bastante da mitologia eslava que conhece tão intimamente — principalmente em seus monstros — como nesse conto. Se você leu o conto, sabe que há um diabo nele, e isso vem de um ditado polonês: ''onde o diabo diz boa noite'' equivalente ao nosso ''onde judas perdeu as botas.''
E é nesse lugar onde a história se passa, um lugar considerado o mais afastado do mundo, onde a história diz que há séculos passados os elfos foram expulsos de suas terras pelos homens.
Um vilarejo local tem problemas com uma criatura em formato de bode que, para as pessoas comuns, é um diabo que rouba suas colheitas. O universo fantástico em que Geralt vive ganha destaque nesse conto. O bruxo parte em uma aventura com seu amigo trovador, Jaskier, por uma região distante, onde eventualmente se deparam com uma criatura em formato de bode que, para as pessoas comuns, é um diabo que rouba suas colheitas.
Antes disso, a dupla passa a refletir sobre o mundo a volta deles, e como eles próprios o alteram. Sob um tom melancólico e saudosista, o autor descreve as regiões por intermédio das discussões entre Geralt e o trovador, quando o primeiro percebe o quão diferente o mundo se tornou: os verdadeiros monstros estão ficando cada vez mais raros e os problemas cada vez mais políticos (como no último conto), envolvendo a crueldade humana e não a sobrenatural.
Se você gosta do Worldbuilding do Sapkowski, esse conto é um prato cheio. Seu início é hilário e leve, realmente divertido de se ler, mas ele desperta mesmo a sua atenção com o surgimento dos elfos, todas as cenas a partir desse fato são excelentes, principalmente a conversa entre Geralt e Filavandrel, que apresenta uma visão amargurada e vingativa dos Elfos perante a crueldade dos humanos. A situação dos elfos é extremamente complicada, eles vivem à margem da sociedade; se tentarem lutar acabarão sendo exterminados, e a assimilação também é uma droga, pois se sujeitam a viver em periferias de não-humanos; e se continuarem a não fazer nada os humanos irão permanecer tomando suas terras até que não sobre mais nada, uma clara alusão à relação entre impérios e nativos.
Sapkowski subverte de modo muito inteligente a visão tão comum que temos de Elfos nas tão comuns histórias fantásticas. Aqui os Elfos não são belos e espirituosos, eles continuam orgulhosos, mas estão doentes e vivem nas montanhas passando fome nas montanhas.
Geralt foi criado e treinado desde criança para enfrentar as bestas que ocupam o seu continente, mas quando foi lançado no mundo, percebeu que aquilo que aprendera sobre a vida não é o que lhe ensinaram, não sabe nem qual é verdadeiramente seu propósito. E é por isso que A Saga do Bruxo é tão boa, o mundo é cínico e sujo que transforma os valores das pessoas que nele habitam, na maioria das vezes Geralt está tão perdido quanto qualquer outra pessoa. Isso é bem representado pela história do Troll em baixo da ponte exibida nesse conto:
''– Vou dar alguns exemplos – respondeu Geralt, após um momento de reflexão – colhidos nos dois últimos meses deste lado do Buina. Certo dia, cavalgo por aí, e o que vejo? Uma ponte e, debaixo dela, um troll exigindo pagamento de pedágio para atravessá-la. Dos que se recusam, o troll quebra uma perna, às vezes as duas. Diante disso, procuro o prefeito e lhe pergunto quanto me pagariam para dar cabo do troll. O prefeito abre a boca de espanto. Como?! E quem manteria a ponte em bom estado se não houvesse o troll? Ele zela pela ponte, conserta-a regularmente com o próprio suor e a mantém em perfeitas condições. Assim, fica muito mais em conta pagar um pedágio para ele. Sigo em frente e vejo um forcaudo, não muito grande: duas braças da ponta do focinho à da cauda. Está voando, com uma ovelha presa nas garras. Vou até o vilarejo e indago quanto me pagariam por aquele ser. Os camponeses caem de joelhos e gritam: “Não. Ele é o dragão favorito da filha caçula de nosso barão; se lhe cair uma só escama do lombo, o barão ateará fogo a nossa aldeia e arrancará nossa pele.” Continuo cavalgando, cada vez mais faminto. Procuro trabalho por toda parte. Sim, trabalho existe, mas de que tipo? Para um, capturar uma ondina; para outro, uma ninfa; para outro ainda, uma pantânama… Enlouqueceram de vez. Os vilarejos estão repletos de garotas, e eles querem seres sobrenaturais. Outro me pede que eu mate uma mecoptera e lhe traga um ossinho da mão dela, que moído e misturado à sopa se transforma em afrodisíaco… ''
A Voz da Razão VI – Nesse intervalo, exploramos mais do Tempo de Melitele, mais específicamente adentramos as úmidas cavernas de cristal que existem nas imediações do templo. Nenneke cultiva e cuida da flora, onde plantas específicas crescem unicamente nesse ambiente.
O Bruxo deseja dar ao templo parte da recompensa que recebeu pela estriga, e também quer deixar com ela dinheiro e algumas joias para Yennefer, mas a sacerdotisa se recusa a trabalhar como intermediária dos dois, e implora para que ele fique mais um pouco no templo, ela insiste que ele faça um transe, mas ele recusa novamente. Nenneke finalmente pergunta sobre a relação entre o Bruxo e a Feiticeira, engatando o último conto, que nomeia o livro.
O Último Desejo – Junto com Uma Questão de Preço, esse também é um dos contos mais importantes para a série como um todo, onde somos apresentados a Yeneffer pela primeira vez.
A esta altura você já deve estar acostumado com o Sapkowski bebendo de diversas mitologias, fantasias e conto de fadas, e aqui somos apresentados a um Djinn no maior estilo Aladim, com três pedidos e tudo mais, mas totalmente renovado e com toques de humor hilariantes.
Somos apresentados a mais uma fatia da magia nesse universo, que se origina nos quatro elementos primordiais. Cada um possui uma dimensão original, e parte delas acabam vazando para o nosso universo (algo similar ao que alguns teorizam sobre a origem da gravidade). Há, portanto, uma dimensão constituída apenas pelo fogo em suas mais variadas formas, uma pelo ar em diferentes formas, e por aí vai. A manipulação desses elementos seria, basicamente, a origem da magia (ou caos, como também é chamada) no universo.
De todo modo, esses universos elementais são habitados, e, de vez em quando, algumas das criaturas desses mundos acabam caindo na Terra. Essas criaturas são extremamente poderosas, já que são, em essência, magia viva. Alguns feiticeiros aprenderam a controlá-las, colocando-as em garrafas. E, aqui, temos a origem da lenda dos gênios nesse mundo. Yennefer pretende manipular uma dessas criaturas, embora não saibamos com detalhes o que ela pretende isso, e o Geralt tem de interver.
Bem, Sapkwoski deixa um mistério no fim desse conto, e por isso prefiro não abordá-lo de cabo a rabo, é melho que você mesmo leia e tire suas próprias conclusões sobre o climax desse conto. Ah, e detalhe, a única coisa que a série da Netflix fez bem foi detalhar mais o passado da Yennefer, de resto a diretora dizimou tudo de complexo que existia nos contos. Já virou clichê dizer isso, mas o livro é umas cinquenta vezes melhor que a adaptação; ela tem alguns pontos positivos também, mas o principal sendo encher merecidamente os bolsos do autor, e atrair mais pessoas para o universo e obra.
Eu acredito que um dos principais motivos da Yennefer ter ficado maravilhada pelo desejo do Geralt foi porque ele viu a verdadeira forma dela, das deformidades que ela tinha e mesmo assim ele pediu para ligar eu destino com o dela, como provavelmente ela leu a mente dele também, isso deve tê-la deixado encantada.
A Voz da Razão VII – A última voz da razão, mostra o confronto do Geralt com Tailles, o racista da Ordem da Rosa Flamejante. Mas a sua parte mais interessante é quando Geralt faz uma parada breve no templo, para recolher os elixires que Nenneke preparou para ele. Iola traz a caisa para o bruxo, mas a mão dos dois encostam uma na outra, a menina é tomada por uma visão e tem um ataque epiléptico.
Assim que ela vai melhorando, Nenneke instrui as sacerdotisas mais jovens a levar Iola para seu quarto e vigiá-la. Ela então se vira para Geralt como se para suplicar pela última vez que ele fique, e Geralt diz o que viu. Esse é outro mistério deixado pelo Sapkwoski, mas provavelmente o que o Bruxo viu foi a própria morte pela visão profética da Iola. Ele diz que não adianta ficar olhando por cima do ombro, e vai embora, mesmo sabendo que as forças do destino começaram a agir.
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