Lucas 26/11/2022
Todos os caminhos levam ao Vale de Salinas, na Califórnia: as definições de livro perfeito foram, para mim, devidamente atualizadas (resenha para os dois volumes)
O norte-americano John Steinbeck (1902-1968), vencedor do Nobel de Literatura em 1962 legou a eternidade um estilo de literatura única. Não que sua linguagem seja rebuscadamente poética ou inovadora, tampouco suas letras são cruas em demasia: sua escrita é sólida, preocupada com as nuances sociais e até mesmo geográficas dos cenários de suas escritas. Associe isto a uma invejável capacidade de montagem de diálogos e teremos assim diante de nós, sem exageros, um dos maiores escritores de todos os tempos e, isso é fato, um dos mais subestimados (é triste, por exemplo, o abandono que suas obras vivem no cenário editorial da atualidade no Brasil).
Steinbeck já era um escritor consagrado quando ele lançou em 1952 aquele que, se não é o seu mais conhecido livro (esse posto cabe Às Vinhas da Ira, de 1939), é o mais audacioso deles: A Leste do Éden é claramente uma homenagem às suas origens, com referências literais a sua infância na cidade de Salinas, na Califórnia.
A audácia supracitada pode ser dimensionada pelo seu tamanho: A Leste do Éden, numa edição brasileira da Abril Cultural (lançada em 1984) foi dividido em dois volumes que totalizam 720 páginas. Números são um artifício exato demais para avaliar algo tão subjetivo quanto a beleza de uma história, mas nesse caso específico elas dignificam ainda mais a proposta do autor: descrever de forma indireta seus antepassados através de uma narrativa que remete à nostalgia que muitos filmes norte-americanos ilustram quando contextualizados entre o final do século XIX e começo do século XX.
Tudo começa com Cyrus Trask, um obscuro militar do estado de Connecticut, situado na costa leste dos Estados Unidos. Depois de atuar na Guerra de Secessão, a guerra civil que abalou os Estados Unidos entre 1861 e 1865, ele mora recluso num "rancho", termo muito usado ainda hoje pelos norte-americanos e que se refere basicamente a uma fazenda. Sujeito estranho, ele é viúvo da primeira esposa e com ela teve o primogênito, Adam. Casou-se novamente com uma moça bem jovem e teve mais um filho, Charles. A vida dos quatro é o ponto de partida ficcional do livro.
Nesta primeira geração dos Trasks, Steinbeck traz a luz uma instituição norte-americana que exerce enorme influência sobre muitas famílias do país ainda hoje: o militarismo. Cyrus torna-se obcecado pela disciplina militar e tenta de todas as formas passar essa influência aos filhos. Charles acaba absorvendo melhor isso, mas traços da sua personalidade o tiram do serviço militar. Adam é quem acaba preservando o "legado" do pai, mas com inúmeras reservas. Tal cenário de disciplina e racionalidade conduz a um ambiente narrativo opressivo, já que o seio familiar, que deveria ser um local de paz, amor e aceitação, acaba virando um lugar de competição, inveja e até ódio. E inevitavelmente isso acaba moldando as personalidades de Adam e Charles e demonstram uma tendência do autor em evidenciar que todos nós somos produtos de nossas escolhas, mas quando somos crianças, acabamos por ser impelidos a seguir determinados caminhos. Não significa que nossas decisões depois de adultos não são responsabilidade nossa, mas elas derivam do ambiente que nos formou quando pequenos.
Esta questão da formação da personalidade de cada um adquire na mão de Steinbeck um caráter psicológico bastante forte, portanto. Mas esta faceta é ainda mais intensificada quando o autor, após descrever os primeiros anos de Adam e Charles passa a detalhar a vida da pequena Cathy Ames. Estou muito longe de qualquer entendimento mais robusto desta ciência maravilhosa que é a psicologia, mas é impressionante a forma que Steinbeck concebeu essa personagem a qual é, na minha visão, uma das mais terríveis criaturas que já viveram num livro. Não é spoiler, já que Cathy desde a sua primeira aparição traz essa sensação de repulsa e medo, mas sua capacidade de fazer o mal parece infinita. E curiosamente, até mesmo como uma forma de contrapor os irmãos Trask, o autor aqui monta um cenário totalmente contrário: Cathy era filha única e cresceu cercada de amor e mimos dos pais. Ou seja, um ambiente rígido, baseado em hierarquia militar, pode ser tão nefasto para crianças quanto um ambiente mais amoroso e doce. Está vendo, caro leitor, como A Leste do Éden é profundo?
Por razões óbvias, os caminhos de Adam, Charles e Cathy se cruzam, não de uma forma simples, mas com muito drama envolvido. Depois, Adam, que sempre foi mais desprendido de tudo e todos, resolve partir para a cidade de Salinas, na Califórnia, onde grande parte da obra se passa. Mas quando essa transposição acontece, o leitor não é um estranho numa cidade nova. Salinas vinha sendo descrita desde o início e a vinda de Adam e seu núcleo aproxima o leitor de outro núcleo, este real: a família Hamilton, que era, de fato, a família materna de John Steinbeck.
Samuel Hamilton, o avô materno do autor, é um dos mais encantadores personagens da obra e adquire nessa nova fase do livro um ar paternal poucas vezes visto na história da literatura. Casado com Liza, ambos imigrantes irlandeses, eles já viviam muitos anos no local, criando seus nove filhos e filhas (uma delas, a professora Olive, que virá a ser a mãe de Steinbeck). Suas terras estavam longe de serem férteis (e é tocante que o autor explique geograficamente toda a região bem no início do livro) e ele enfrentava sérias dificuldades para manter a família, pelo menos num primeiro momento. Entretanto, Hamilton era extremamente engenhoso e criativo, concebendo inúmeras invenções que eram posteriormente patenteadas. Ele era, por exemplo, um grande construtor de poços de água e este aspecto acaba ligando-o ao recém-chegado Adam Trask.
O círculo dos Hamilton possui uma importante função estrutural na narrativa, já que Steinbeck usa ele para descarregar pontuais momentos de divagação, as quais tratam da vida dos seus antepassados (o incrível capítulo 14, que descreve a história da mãe dele é um exemplo). Samuel, especialmente, é dissecado em toda a sua sabedoria, especialmente quando ele se põe a filosofar, na maioria das vezes com Lee, o fiel empregado chinês de Adam e um dos mais sensacionais coadjuvantes que já conheci na literatura. Dentro da preocupação de transmissão de mensagens universais que Steinbeck possui, os Hamilton são radicalmente contrários ao que formou os Trask e Cathy Ames: aqui, o seio familiar existe, o trabalho e a resiliência também e ambos são elementos que impulsionam os laços sanguíneos de uma forma que só quem vive no interior pode compreender.
O passar das gerações (e outros acontecimentos que aqui não podem ser revelados) trazem a existência de Caleb e Aron (ou Aarão, já que ambos os nomes foram baseados em personagens do Pentateuco e acompanharam Moisés na jornada até Canaã), irmãos gêmeos que carregam consigo não só a influência das personalidades de seus antepassados, mas também a questão alegórica do próprio título: quando Caim matou Abel, ele foi conduzido para o leste do jardim do Éden. Ou seja, o livro está intimamente amarrado a esta triste história que envolve os filhos de Adão e Eva. A mais significativa divagação do livro trata justamente de uma reinterpretação do capítulo 4 do livro do Gênesis, onde é narrado o assassinato de Abel pelo irmão Caim e a qual gera uma das cenas mais inesquecíveis de toda a obra.
Caleb e Aron representam os novos tempos: a alvorada do século XX foi transformadora e transtornadora. Agora, as influências de personalidade trazem maiores repercussões, mais práticas e menos íntimas. O individualismo é fortalecido, é preciso vencer seus medos de alguma maneira. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) oferece algumas possibilidades para isso, mas nem sempre essa rebeldia dos novos homens do século XX é premiada com algo concreto. Contudo, para John Steinbeck é motivo para ampliar ainda mais o seu escopo narrativo, não de uma forma horizontal, com novos núcleos ou personagens, mas de uma forma intrínseca aos tipos previamente concebidos. Novas e mais complexas dúvidas permeiam a mente dos indivíduos e o tempo (ou as páginas) não podem mais ser quantificadas. O leitor se torna um encantado passageiro diante de todo esse turbilhão,
Dentro disso, em pontuais momentos da obra, Steinbeck critica aquilo que hoje, setenta anos depois do lançamento de A Leste do Éden, é uma tônica: os imediatismos, relacionados a novas necessidades que precisam ser atendidas de qualquer maneira. A histórica crítica aos métodos de produção em massa, que começavam a se desenvolver no início do século passado, bem como a forte ressalva às coletividades de qualquer natureza, funcionam como contraposições extremamente elegantes a dois entendimentos que sempre foram opostos. Simbolizam também o caráter universal dos apontamentos "extra narrativos" do autor, que podem ser assimilados por pessoas de qualquer opinião, o que enobrece sobremaneira o livro como um todo.
É difícil imaginar a quais valores ou exemplos A Leste do Éden não está ligado. O livre arbítrio, como definir quando podemos ou quando devemos fazer algo, aceitação, valores familiares, traumas infantis, religião; a narrativa, ensinando ou fazendo ficção, que bate brutalmente numa página para afagar na seguinte; personagens marcantes sem serem incomuns, que se perpetuam e protagonizam cenas e ensinamentos igualmente perpétuos... São inúmeros os aspectos que fazem desta obra um livro sensacional, a grande surpresa literária de 2022 para mim. Sumamente, A Leste do Éden transforma seus leitores em admiradores e defensores: fatalmente, tornar-se-á uma carta pesada para qualquer leitor utilizar quando perguntado acerca das leituras preferidas da sua vida.