Renata CCS 03/07/2014O passado, o presente e o futuro em um único e poderoso agora..
"A escrita, ou a arte, para ser mais abrangente, cumpre funções que mais nenhuma área consegue cumprir. () Sinto que há poucas experiências tão interessantes como quando se lê um livro e se percebe já senti isto, mas nunca o tinha visto escrito, procurar isso, ou procurar escrever textos que façam sentir isso, é uma das minhas buscas permanentes. Trata-se de ordenar, de esquematizar, não só sentimentos como ideias que temos de uma forma vaga, mas que entendemos melhor quando os vemos em palavras. Trata-se também de construir empatia: através da leitura temos oportunidade de estar na pele de outras pessoas e de sentir coisas que não fazem parte da nossa vida, mas que no momento em que lemos conseguimos perceber como é. E isso faz-nos ser mais humanos. Na leitura e na escrita encontramo-nos todos naquilo que temos de mais humano".
José Luís Peixoto
Eu acredito, honestamente, que seja mais fácil conhecer um escritor lendo seu trabalho do que falando ou convivendo com ele. Ficamos com uma falsa sensação de proximidade, de identificação e até de cumplicidade. E gosto do jeito como alguns escritores lidam com a língua, com uma segurança e confiança que chega a dar inveja (da branca, claro!). José Luis Peixoto me deu ambos: esta enganosa sensação de intimidade e uma dorzinha gorducha de cotovelo. É impossível ficar indiferente com a proximidade que possui com as palavras e a forma como desordena as regras para moldá-las a ser bel-prazer. A sua escrita em nada é simples, tudo é intenso, profundo, com descrições carregadas de sentimentos que nos tocam de forma especial. CEMITÉRIO DE PIANOS foi meu primeiro contato com este escritor e posso afirmar que não deu para evitar uma espécie de encantamento. JLP escreve prosa como se escrevesse poesia.
A obra é uma história sobre o relacionamento entre os membros de família, entre marido e mulher, pais e filhos e também entre irmãos. Uma história feita de amor, mas também de violência e de momentos de solidão, de tristeza e de saudade. Cada um dos personagens vai passando uma perspectiva diferente de sua própria história, numa mistura momentos alternados de alegria e tristeza, de nascimentos, de suas histórias de amor, de desilusão, de traições, de ambições e de acomodação. Vidas ordinárias em um cotidiano monótono, colorido de forma lindamente poética pelo escritor.
A narrativa tem um cenário bastante significativo, que é o cemitério de pianos que dá o título do livro. É um depósito poeirento dentro da marcenaria da família, onde se acumulam estruturas irrecuperáveis de pianos, que só servem para doar peças de reposição para que outros pianos sejam reparados. Permanece abandonado por anos, como que para frear o escape de suas músicas e histórias. Um local de segredos e memórias de vários tipos: são várias as recordações da família Lázaro naquele recinto. O cemitério de pianos é uma espécie de testemunha de vários momentos marcantes da história.
E os Franciscos não eram apenas carpinteiros: são pessoas apaixonadas por música e se ocupavam com zelo da tarefa de trazê-la de volta ao mundo. Há uma espécie de devoção, de realização pessoal, pois esse cemitério de pianos não era apenas uma pequena sala de trabalho. Para a família Lázaro, tinha quase o tamanho do planeta.
O romance é narrado em primeira pessoa por três homens da família Lázaro: avô, pai e filho, e cada um em um espaço diferente, em um tempo diferente, porém com as mesmas angústias e dúvidas. Três gerações cujas vozes ocasionalmente se confundem ou se complementam. Os três narradores são à escrita uma certa atemporalidade encantadora, e que quase nos transporta para lá. É um romance onde o relato cronológico não existe, e não faz falta alguma.
A escrita de JLP não é sequencial, em nenhum momento. Para acompanhá-lo temos que manter um ritmo de leitura desenfreado porque, se estamos no presente, logo nos descobrimos no passado, e com os olhos já espreitando no futuro. É como se o texto fosse dividido em vários blocos, onde as vozes narrativas se alternam e a história vai ganhando sentido à medida que as peças vão se encaixando.
A aparente desorientação causada pelos nomes, as idas e vindas na história com uso de uma narrativa fracionada, e com alguns momentos de fantasia e irrealidade - particularidades que poderiam pôr o livro a perder - acabam fazendo o oposto, revelando que JLP possui um domínio perfeito e admirável da linguagem.
A obra é rica e desafiadora com seu estilo modernista, recheada de nuances, com arranjos sutis e bem encadeados, tudo recheado com muita poesia.
E não se preocupe em anotar nomes ou tentar fazer uma árvore genealógica. O melhor é fazer é deixar que JLP o conduza, deixando a história fluir. Mesmo pulando de personagem em personagem, sempre sabemos onde estamos. Simplesmente dê a si mesmo um tempo para assimilar seu estilo, pois é parte do encantamento da leitura montar esse quebra-cabeças de imensos pedaços de texto.
A narrativa tem a capacidade de fascinar mesmo quando achamos que já não pode mais fazê-lo. E só por isso a leitura já é merecedora de nossos olhos: porque no meio da história acabamos por nos prender em frases que nos fazem refletir. Porque admiro a poesia por entre a prosa.
Fiquei mais rica.