joaoggur 14/04/2024
O cheiro. O ralo. O olho. E? a bunda, é, a bunda.
Imagina um cidadão ?que parece o moço do comercial do Bombril?, que não tem nome, que cuida de uma loja de antiguidades, e que tem a profunda sensação que o cheiro de merda exalado pelo ralo atrapalha seu trabalho. Bem, seu ?trabalho? não seria a curadoria das quinquilharias; podemos dizer que ele é obcecado em tirar vantagem nas fraquezas das pessoas. Obcecado, aliás, ele fica por um olho de vidro que despretensiosamente chegara a sua loja. E por uma bunda. Mas acho que já falei demais.
Mutarelli nos vence pelo escatológico; o narrador-personagem sem-nome não é digno de qualquer simpatia, e isso não significa que queremos largar a leitura. Ao criar uma atmosfera banhada no irreal, em linhas curtas e diálogos enxutos (percebo uma forte influência de Cormac McCarthy [na questão estílica] e de Kafka [na questão temática], somado a certa herança da dramaturgia), ficamos com certa tentação em saber até que ponto tudo aquilo pode chegar, até onde o autor pode escalar uma história (talvez por uma visão um pouco superficial) simples.
Somos tragados pelo universo de O Cheiro de Ralo; e esse ?mundo?, a meu ver, é na verdade uma grande lente, que faz ver o que chamamos de realidade pela ótica do narrador. A medida que o protagonista vai perdendo a sua sanidade, tornando-se gradualmente mais obcecado por elementos supostamente banais, é como se nós também perdêssemos nosso senso de distinguir o normal do esquisito. Começamos a leitura sentindo um amargo gosto na boca; entretanto, cada vez mais nos acostumamos com a forma que os fatos são narrados, e no final, terminamos a leitura considerando escatologias meras trivialidades.
Isto é o suprassumo da desumanização, o sabor mais profundo da insanidade. Não é um texto fácil, - não recomendo a iniciantes na literatura. Tenho pena daqueles que nunca irão provar da genialidade de Mutarelli.