jota 02/09/2020Avaliação da leitura: 3,8/4,0 – BOM (apesar de certo desconforto que provoca) Livro novo tem cheiro bom, de tinta, penso; livro velho pode cheirar a mofo, conter manchas amareladas causadas pela passagem do tempo etc. Mas livro de Rubem Fonseca (1925-2020), caso dos catorze contos deste Secreções, Excreções e Desatinos, é melhor ler no formato digital porque no livro físico tem hora que parece que algo vai feder ou escorrer pelas páginas, produto de alguma excreção ou secreção expelida pelos protagonistas. Tudo isso é um desatino, eu sei, mas impressiona demais a escatologia presente nos contos do volume: alguns deles causam profundo desconforto no leitor. Principalmente porque continuo me lembrando de certas passagens de uma leitura anterior. Faz pouco tempo que li Ulysses, de James Joyce, e lá também o personagem principal tinha algumas manias relacionadas a odores e secreções corpóreas, que me voltaram à memória agora.
Leopold Bloom gostava de segurar as fezes enquanto defecava (lembra prazer anal do Freud), guardava para contemplação um pedaço sujo de papel higiênico usado por uma prostituta, aspirava o cheiro de uma lasca de unha do pé. Outro personagem do livro, Stephen Dedalus, passava o mês inteiro com um único banho e olhe lá. Mas perto de alguns personagens de RF, até que eles não agiam tão estranhamente assim. Na privacidade (mentalidade) de cada um, estranho pode ser aquilo que os outros apreciam ou fazem, não o que você faz. Aquilo que fazemos ou deixamos de fazer, que conservamos entre as quatro paredes, que evitamos falar sobre ou somente dizemos a alguém muito íntimo, é exposto por RF com naturalidade, porque todo mundo tem um pouco desse ou daquele personagem, senão através de seu comportamento, através do pensamento. Difícil que não seja assim: uns mais, outros menos, somos todos humanos. Ou animais, por vezes.
Rubem Fonseca teve várias histórias adaptadas para cinema e televisão porque sua escrita é altamente visual: você não precisa imaginar muita coisa, a imaginação fica por conta do autor. Quando lemos suas narrativas na verdade parece que estamos vendo as imagens passando em frente aos nossos olhos, então alguns relatos podem se aproximar muito da pornografia. Além dessas imagens, que podem ser classificadas de obscenas por alguns leitores, RF também não economiza nos palavrões, logicamente: quase todos os contos trazem muitas palavras e expressões chulas, verdadeiramente cabeludas. Mas dá para entender isso: brasileiro fala muita besteira mesmo, não apenas os personagens deste volume. RF não escreveu um livro com a simples intenção de chocar o leitor, impressioná-lo apenas, coisa que ele já faz desde seus primeiros livros, com narrativas cheias de violência, como são mesmo nossas grandes cidades, violentas por natureza (acho que meu primeiro Fonseca foi O Cobrador, inesquecivelmente violento).
Há narrativas esdrúxulas aqui, como o primeiro conto, Copromancia, que trata crua e profundamente de dejetos humanos: seu personagem parece um cientista merdal de tanto saber acumulado que tem sobre fezes. Por outro lado, há alguns contos engraçados, caso dos desencontros narrados em Mulheres e Homens Apaixonados, no qual se destaca uma curiosa mãe de santo e seus inusitados conselhos para se conquistar um amor. E há muito mais: como diz José Castello no final, RF devassa a condição humana como fizeram “(...) Jean Genet ou o próprio Marquês de Sade, escritores que (...) tocaram nos extremos mais desagradáveis da existência, que os escolheram como matéria de literatura e (...) de reflexão.” Lógico que RF não atinge o mesmo resultado desses dois autores, não seria seu objetivo. Mas, sem dúvida, suas histórias curtas poderiam se passar em qualquer lugar, lidas e entendidas por leitores de qualquer parte. São universais.
Lido rapidamente em 30/08 e 01/09/2020.