Andreia Santana 16/03/2017
"Pode ser amor, mas pode ser também tudo ilusão, tudo miragem"
A identidade é uma história difícil de aceitar nos dias de hoje, quando as mulheres buscam o empoderamento e, cada vez mais unidas, lutam diariamente contra as convenções que as aprisionam em modelos de beleza e comportamento.
Mas, essa novela de Milan Kundera é necessária, justamente porque parte de uma premissa construída por preconceitos antigos: a de que as mulheres vivem em função de serem desejadas pelos homens e angustiam-se diante do envelhecimento; porque uma vez perdido o viço da juventude, não serão mais olhadas, cobiçadas.
De uma forma muito particular, a obra toca transversalmente na questão da invisibilidade feminina, no desconforto de sermos esse ‘outro’ alijado de direitos e da própria voz. Pontua ainda questões como maternidade, frustração, sexualidade e os comportamentos super-protetores e cavalheirescos que acabam por subestimar a capacidade das mulheres comandarem as próprias vidas e decidirem o próprio destino.
A identidade conta a história de Chantal e Jean-Marc, casal que, após férias em um balneário, enfrenta uma crise no relacionamento. No hotel onde se hospedaram para as férias, Chantal queixa-se de que os homens não olham mais para ela, que todos lhe parecem ridículos e infantilizados nos papeis de pai, com bebês presos ao peito, nas mochilas tipo canguru. E, por isso, já não viram a cabeça para acompanhar o seu andar.
Jean-Marc, acreditando na ideia de que as mulheres precisam do desejo masculino para sentirem-se inteiras e que apenas “o olhar do amante” não é suficiente para saciar o ego feminino, toma uma atitude que termina por desencadear a crise no relacionamento dos dois. Ao mesmo tempo, Chantal precisa lidar com questões pendentes de um casamento anterior, onde viveu uma perda que a afetou profundamente e uma relação abusiva não só por parte do ex-marido, mas de toda a família dele.
A história é construída propositalmente para confundir sonho e realidade, como se Chantal e Jean-Marc vivessem muitas vidas dentro de uma só e precisassem percorrer um caminho longo e árduo para encontrarem a si mesmos e um ao outro. A questão no livro está mais voltada para os processos de autodescoberta, principalmente os de Chantal. Embora, vale ressaltar, o autor também descreva situações facilmente identificadas com o machismo estrutural da sociedade e com o machismo particular dos personagens.
Com isso, não estou dizendo que Milan Kundera é machista, mas que ele expõe na narrativa os comportamentos machistas dos seus personagens (de Jean-Marc, do chefe de Chantal, do ex-marido) e os condicionamentos impostos às mulheres e moldados a partir da educação machista recebida.
A própria insegurança de Chantal com sua aparência ou a passividade com a qual ela aceitou diversos abusos ao longo da vida mostram que a protagonista tem uma longa jornada de desconstrução e reconstrução de si mesma pela frente.
Embora não seja tão bom quanto A insustentável leveza do ser, publicado em 1982, considerado a obra-prima de Milan Kundera e que trata do tema central da opressão em seus diversos níveis, A identidade, que é de 15 anos depois, 1997, traz o mesmo questionamento existencial e é escrito com a poesia característica do estilo do autor.
O livro deixa um travo amargo na boca nos leitores (principalmente, das leitoras), provocando inquietação e, ao mesmo tempo, oferecendo um rico material de reflexão…
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