Leo 07/09/2015
Lá pelo terço final do romance “Purgatório”, um dos personagens principais pergunta ao diretor americano Orson Welles sobre seu interesse em realizar um documentário sobre a Copa do Mundo da Argentina de 1978. “A arte é ilusão, a realidade é ilusão” afirma Welles, pouco antes de recusar o convite. “As coisas existem somente quando você as vê, seria possível dizer que os seus sentidos criam os objetos”.
A frase resume bem a capacidade do cinema de criar e destruir universos autossuficientes na mente do espectador. E funciona, em especial, como uma espécie de resumo deste belo romance do escritor argentino Tomás Eloy Martínez, que narra a estranha história de Emília, uma cartógrafa que reencontra o marido desaparecido há 30 anos durante a ditadura militar – apenas para descobrir que ele não envelheceu um ano sequer.
O que começa como uma narrativa com ares de realismo fantástico aos poucos se revela algo mais complexo que isso. Talvez Emília seja louca. Talvez a reaparição do marido seja apenas uma intervenção do narrador na história, em uma solução metalinguística que aproxima “Purgatório” da obra-prima “Reparação”, de Ian McEwan e, em especial, de “Formas de voltar para casa”, do escritor chileno Alejandro Zambra.
Tanto Martínez quanto Zambra escaparam da ditadura em seus países. O primeiro, por meio do exílio, o segundo, devido à idade. Mas ambos encontram na literatura uma forma de acertar as contas com o a sensação de dívida em relação ao passado. Seus narradores, nem um pouco confiáveis, reescrevem o passado ao mesmo tempo em que revelam seus truques narrativos, expondo assim as inseguranças e limitações dos próprios autores.
Dessa forma, dentro do romance de Martínez, a simbologia da ilusão ultrapassa a esfera da arte e é utilizada também para ressaltar a dor das famílias que até hoje precisam lidar com o desaparecimento de entes queridos. Sobre assunto, o próprio Welles conclui, em um dos melhores trechos do livro: “Os seres humanos não são ilusões. São histórias, memórias, são imaginações de Deus. Se você apaga um só ponto dessa linha infinita, apaga também a linha inteira, e nesse buraco negro podemos cair todos nós.” É Martínez lembrando que, quando as luzes se acendem ou a última página é virada, infelizmente a ilusão se encerra.
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