Che 25/10/2017
SUPERAÇÃO DO COLONIALISMO
De tempos em tempos tenho pequenas obsessões de temas históricos que julgo negligenciados ou por mim individualmente, ou pela esquerda brasileira de modo geral. No último trimestre do ano passado, por exemplo, busquei ler - também pela coleção "Revoluções do século 20" da editora Unesp - sobre os processos revolucionários asiáticos. Depois, no começo desse ano, fiquei encucado em ler sobre a Guerra do Paraguai. Nesses últimos meses, a bola da vez tem sido um tema que percebo meio esnobado pela esquerda de modo geral: as conquistas anti-imperialistas e sobretudo anti-colonialistas de países africanos nos anos 70 e 80.
Para tanto, comecei a ler os livros da já referida coleção da Unesp sobre a África. Mês passado li sobre a "Revolução Argelina", em seguida passei pra esse livro de Paulo Visentini (que já escreveu também dois bons livros para a coleção, sobre as revoluções coreana e vietnamita) o qual, na verdade condensa três casos de processos revolucionários africanos - Etiópia, Angola e Moçambique - num volume só. Nos casos de Moçambique e Etiópia, o autor faz um agradecimento em uma nota de rodapé pra outros autores, o que me levou a me perguntar se eles participaram como co-autores na pesquisa e mereceriam ser citados desde a capa (como aconteceu no livro da revolução coreana).
Sobre o livro, paga evidentemente o preço por querer tratar de três casos complexos num volume só de quase 200 páginas, às vezes passando por cima de pontos importantes, como nos casos da guerra civil de Moçambique ou dos ganhos sociais do governo de Agostinho Neto no trecho angolano. Além disso, a gente nem entende direito como funcionava e o que reivindicava a tal oposição de taverna que o general Mengistu fuzilou em 1977, na Etiópia. E por aí vão as insuficiências do livro, que às vezes tenta inclusive ir além de falar desses três países (o que já não é pouco) e passa a citar os casos do Congo, da Somália, etc. Ufa! É triste que a bibliografia sobre as revoluções desse continente seja escassa, pelo menos no Brasil.
Feitas essas ressalvas, tem muita coisa bacana e para os propósitos de síntese do livro, ele dá conta do recado. É curioso como a África do Sul - na época encabeçada por um regime claramente racista - atuava como uma espécie de "núcleo coxinha" da geopolítica sul-africana dos anos setenta e oitenta, a ponta de lança dos países da OTAN e quartel general dos imperialistas, sempre tentando boicotar as então nascentes revoluções moçambicana e principalmente angolana. Isso acontecia através de grupos também ditos de esquerda que eram sectários e de influência sugeridamente maoísta contra o 'social-imperialismo' soviético, que tentavam derrubar os governos de Agostinho Neto e Samora Machel.
Agostinho Neto era uma figura admirável, a pauleira que aguentou pra tocar a revolução em Angola e unificar um partido super dividido foi duríssima, numa guerra civil de décadas e encerrada apenas no século XXI. Machel era bem mais light, com direito a ser relativamente próximo de Reagan e Thatcher, mas passou por dificuldades parecidas, com alguns resultados importantes acerca de manter o país unido apesar da pressão estadunidense e sobretudo sul-africana apoiando os conflitos sectários internos.
Além do papel sul-africano nesses dois casos, me surpreendeu também o tamanho da influência diplomática e até militar de Cuba em ambos e também na revolução etíope. A participação na contenda angolana eu já conhecia, mas nas outras duas não e frequentemente os cubanos atuavam de modo decisivo, como na guerra entre Etiópia e Somália. Sinceramente, por mais que maoistas critiquem o governo de Fidel Castro por essas intervenções, por enquanto só vejo motivos para elogiá-las. Principalmente porque, como já é de praxe, Cuba sem dúvida contribuiu também com sua ótima medicina e ajudou gente pobre a resolver problemas de saúde básicos em boa parte do início dessas revoluções.
Outra coisa que os três processos revolucionários tem em comum é que ambos são a priori mais anti-colonialistas do que anti-imperialistas (o marxismo-leninismo declarado por todos surge como necessidade de ter a proteção soviética e tomar partido na Guerra Fria), sofreram todos decisivamente com a Perestroika do lamentável Mikhail Gorbachev e principalmente com o fim do bloco soviético no começo dos anos noventa, o que decretou de vez o estancamento das revoluções nos três países (além de prejudicar qualquer país socialista ou pretensamente socialista do mundo) e inevitável retrocesso ao capitalismo.
O trecho da Etiópia é o mais curioso e intrigante do livro. Por uma série de razões. Primeiro pelos conflitos envolvendo territórios com a Somália e sobretudo a Eritreia (que era pra ser província da Etiópia e lhe dar saída ao mar). Segundo e mais importante, porque é um episódio histórico de salto de uma economia clara e profundamente feudalista - totalmente à parte da modernidade - direto para o socialismo. Isso gerou uma melhora grande em reforma agrária e alfabetização, ainda que as guerras por territórios tenham custado investimentos militares que impediram um salto qualitativo mais evidente.
Finalmente, resta fazer uma ressalva para a editora Unesp. Já que era pra fazer 'apanhadão' de várias revoluções africanas no mesmo livro, podiam dar um jeito de incluir aqui minha favorita daquele continente: a revolução burquinense, que teve resultados em segurança alimentar e combate a corrupção muito bons. O venerável Thomas Isidore Sankara sequer é citado no livro inteiro e só mencionam o Alto Volta (atual Burkina Faso) totalmente de passagem no primeiro capítulo. Esse episódio burquinense merece mais atenção e empenho dos nossos pesquisadores. E nem venham me dizer que não cabe chamar de revolução porque foi 'golpe', afinal, se o caso etíope entrou nessa definição revolucionária do livro, o burquinense também merecia. Apesar dessa falta, vale a leitura do livro de Visentini e, sobretudo, vale a pena conhecer as experiências africanas na tentativa de construir o socialismo.