Contos Latino Americanos Eternos

Contos Latino Americanos Eternos Alicia Ramal




Resenhas - Contos Latino Americanos Eternos


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jota 14/10/2020

BOM (mas faltam algumas coisas enquanto sobram outras...)
Com este volume publicado em 2005, Alicia Ramal, tradutora e organizadora da coletânea, então professora de língua e literatura espanhola e hispano-americana da PUC, RJ, pretendia mostrar que cada um dos contos selecionados trazia dentro de si “o sentimento do homem latino-americano, seu sofrimento, seus sonhos, suas incertezas.” Desse modo, cada leitor se sentiria, ainda nas suas palavras, “identificado em algum momento da leitura com os sentimentos que palpitam entre suas linhas.” Como isso seria uma coisa sólida, certa para ela, então denominou os contos de “eternos”, não de melhores ou mais representativos da América Latina ou algo parecido, como costuma ocorrer com coletâneas do gênero. Tanto são “eternos” que o conto mais recente é de 1975; o mais antigo é de 1888.

Prosseguindo, Ramal afirma ainda que as histórias do volume representam “arquétipos do nosso inconsciente coletivo e que a combinação entre os elementos fantásticos e o mundo real cria em cada uma destas obras um magnífico equilíbrio entre a atmosfera mágica e o cotidiano, que nos emociona e identifica.” Se ela pensava em emoção e identificação individuais (ou mesmo grupais) pode estar correta, mas parece não haver identificação ou sentimento latino-americano coletivo, ou mesmo muito grande entre os povos da região, como seria desejável. No nosso caso, não apenas a língua portuguesa nos distingue dos demais países da área, também outras características demográficas e culturais. (O Brasil já foi acusado muitas vezes, até mesmo por brasileiros, de estar de costas voltadas para o restante da América do Sul. Também existe a idéia de que nos consideramos apenas brasileiros, não latino-americanos como os demais habitantes da região.)

A união ou solidariedade latino-americana parece ocorrer mais em situações específicas, catastróficas, não o tempo todo. Acolhemos venezuelanos fugindo da miséria causada pela ditadura chavista, mas nem todos foram bem recebidos na fronteira, no resto do país. Os mexicanos torceram pela seleção brasileira de futebol campeã em 1970, mas os brasileiros torceram contra os argentinos na final mundial de 2014 e a favor da Alemanha, que nos derrotara por 7 a 1 pouco tempo antes. Escrevendo esses comentários me veio ainda à memória uma canção composta pelo cubano Pablo Milanés em 1976, Canción Por La Unidade LatinoAmericana, interpretada aqui por Chico Buarque e Milton Nascimento, também por outros artistas. Nela se cantava a esperança de que essa união (que nunca ocorreu explicitamente) pudesse se concretizar um dia. (Talvez na música apenas, ou no futebol, de vez em quando, ou ainda na política, mais esporadicamente.) Algo semelhante parece estar no desejo de Alicia Ramal, de encontrar aspectos comuns na literatura de nossos povos, quer dizer, nas histórias selecionadas, que pudessem unir a região como um todo.

O que encontramos de fato no volume é uma grande diversidade de histórias, resultado da diversidade humana, cultural e social presente na América Latina, quase um continente ela mesma. O que a gente brasileira tem em comum com os demais povos latino-americanos se traduz bastante em violência, corrupção, desigualdade social, preconceito, descaso com o meio ambiente, presença de governos populistas e políticos demagogos, educação ruim, insegurança pública etc. Vários desses temas (ou problemas), que são bem antigos, estão presentes na coletânea de uma forma ou de outra: são vinte e duas histórias narradas por alguns dos mais importantes autores da região. Curiosamente nenhum conto é de autoria feminina. Penso, por exemplo, em Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Telles, grandes contistas, já que a edição é brasileira e foi organizada por uma mulher.

Então ela poderia ter trazido narrativas escritas por mulheres de quaisquer países da região: uma seleção apenas com textos de escritores parece ficar devendo algo à diversidade. De todo modo, ela é bastante variada, é preciso reconhecer. Contempla histórias de vários países da região, traz textos de diferentes épocas e temas que permitem observar aos poucos, aqui e ali, aleatoriamente, a passagem de uma sociedade rural para outra, urbana. E notar que a América Latina permanece com várias diferenças, com vários problemas em seu desenvolvimento, parece que não consegue sair do Terceiro Mundo, apenas modernizar-se em alguns setores. Ou andar mais ainda para trás. A Venezuela, novamente como exemplo, sem nenhum autor presente na seleção, mostra como as coisas erradas encontram terreno fértil por aqui. Mas ela não é a única, evidentemente...

Bem, há de tudo um pouco nesse volume: histórias fantásticas (várias delas), românticas (umas poucas e um tanto insólitas), sobre infância e adolescência, sobre violência (muitas delas), sobrenatural, religião, servidão etc. A mais impactante, a meu ver, continua sendo um conhecido conto brasileiro de 1975, Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, que também é o melhor do volume, a história mais recente e lá se vão quarenta e cinco anos (a violência no Rio parece ser “eterna” mesmo, mas mais cruel ainda; não se falava em “balas perdidas” naqueles tempos, nem o tráfico de drogas era tão poderoso e assassino). O conto de Fonseca está sempre presente em coletâneas de melhores contos brasileiros de todos os tempos, acertadamente. Mas vejamos um pouco sobre cada um dos demais, então:

Casa tomada (1951) - Julio Cortázar (1914-1984), argentino. Aos poucos, forças estranhas vão invadindo uma grande residência habitada apenas pelo narrador e sua irmã. Estranhamente (ou, pensando bem, tudo muito de acordo com a literatura de Cortázar), os irmãos não esboçam qualquer reação frente aos acontecimentos e a cada dia vão ficando com menos espaço para viver, até que um dia... BOM

À imagem e semelhança (1968) - Mario Benedetti (1920-2009), uruguaio. Conto curioso, parece uma daquelas fábulas de La Fontaine, mas sem final feliz ou moral que se aproveite. É a história de uma formiguinha e sua imensa luta para levar para o formigueiro um torrão de açúcar, uma proeza extremamente mal sucedida quando surge um humano para atrapalhar. BOM

Em memória de Paulina (1948) - Adolfo Bioy Casares (1914-1999), argentino. Conto até certo ponto poético, mas com toques fantásticos, característica das histórias de Casares (amigo e parceiro literário de Jorge Luis Borges), que tornam em suas mãos uma história de amor algo muito diferente do que seria se fosse narrada por um escritor sem seu comprovado talento. Pode confundir um pouco o leitor menos atento... BOM

Macário (1953) - Juan Rulfo (1918-1986), mexicano. Nesse conto temos um monólogo ao longo do qual o personagem, nas palavras de Ramal, conta o que sente, com linguagem simples e expressiva: “A sua mentalidade deficiente, seus sentimentos confusos, o caos de se sentir vítima da desgraça vão tecendo-se num relato que atinge uma admirável unidade artística, dentro de um pequeno e comovedor drama humano.” BOM

Missa do galo (1899) - Machado de Assis (1839-1908), nosso mais importante contista, participa da coletânea com uma de suas histórias mais conhecidas. A de um adolescente do interior do Rio de Janeiro que, inocentemente seduzido, quase perde a missa de Natal na corte ao observar, com grande interesse durante uma conversa, a dona da casa em que está hospedado enquanto estudava na cidade grande. MUITO BOM

O rei burguês (1888) - Rubén Dario (1856-1916), nicaragüense. Para Ramal esse conhecido conto de Dario “trata da complicada relação entre o artista e a burguesia. O poeta sucumbe diante da ignorância e do despotismo do rei. Este conto é considerado símbolo de uma época, revelador das transformações sociais. O rei sintetiza o poder; o poeta é a expressão da sensibilidade.” BOM

Paco Yunque (1931) - César Vallejo (1892-1938), peruano. Primeiro dia de Paco, garoto campesino, na escola publica da cidade. Não se sente nada confortável ali, é humilhado publicamente por Humberto (filho do patrão de sua mãe, empregada doméstica), menino de péssimo comportamento, grande mentiroso ainda por cima. Mas o professor sempre acredita em Humberto e pouco se importa com as agruras vividas por Paco. MUITO BOM

Uma senhora (1970) - José Donoso (1924-1996), chileno. Esse conto, segundo a organizadora, "é uma história irracional, na qual um fato corriqueiro se transforma numa obsessão e também talvez numa premonição, uma história inexplicável próxima do surrealismo. Para Donoso, as relações entre a literatura e a imaginação estão invertidas; neste conto, é a realidade que paga tributo à imaginação.” BOM

O inferno tão temido (1967) - Juan Carlos Onetti (1909-1994), uruguaio. Onetti vale-se da “prosa obscura, ambígua, densa e indireta” para contar uma história baseada num fato real que lhe teriam contado. Ramal afirma ainda que ele “desafia o leitor, com recursos estilísticos bem dosados, a descobrir por si mesmo a trama da história.” Assim, o leitor é levado a fazer uma série de conjeturas, fica jogado à sua própria imaginação, “contando apenas com o elemento central: algumas fotos, que o autor não descreve, mas que, conforme o desenvolvimento do comportamento do protagonista, podemos imaginar que sejam obscenas ou reveladoras de paixões escabrosas.” BOM

Chac Mool (1954) - Carlos Fuentes (1928-2012), mexicano. Conto em que, segundo Ramal, “os elementos fictícios e os reais se entrelaçam. Uma estatueta maia e seu dono estabelecem uma estranha relação. Um povo que viveu há milênios e cuja cultura tentaram erradicar, apagada sob uma nova realidade, deixou suas marcas entre os povos que chegaram depois. O conto reflete a noção de que há muitos e intrigantes mistérios que nunca foram descobertos com relação a esse povo e a sua cultura.” BOM

Minha vida com a onda (1949) - Octavio Paz (1914-1998), mexicano. Conto pra lá de fantástico, em que o narrador conta suas atribulações e as peripécias decorrentes da consequência de levar para casa uma onda do mar que a ele se apegou e não o larga: dela não consegue se livrar, de modo algum, mas um dia... É o conto mais bem humorado da seleção. MUITO BOM

Viagem à semente (1944) - Alejo Carpentier (1904-1980), cubano. Conforme a organizadora, o conto é uma das mais surpreendentes e criativas histórias de Carpentier: “Trata-se de uma narrativa inesperada, porque é contada de forma invertida. Interessantes são os matizes que o autor vai incorporando nas descrições, a riqueza de imagens e de vocabulário, o imenso labirinto de palavras que se deslocam através dos anos, dos acontecimentos, dos sentimentos, da descoberta da vida e da morte. uma semente que deu seu fruto, sua flor, suas folhas, germinando; um percurso de trás para a frente desse eterno círculo do qual fazem parte todas as criaturas do universo.” BOM

Feliz Ano Novo (1975) - Rubem Fonseca (1925-2020). O melhor conto do volume é também o mais violento, deixa o leitor sempre impactado, mesmo que não seja a primeira vez que o leia e tenha sido escrito há mais de quarenta anos. Jovens bandidos invadem uma festa de Ano Novo de uma família carioca e praticam todo tipo de violência contra os convidados, vários dos quais são mortos friamente à vista dos outros. ÓTIMO

O peru de Natal (1947) - Mário de Andrade (1893-1945) narra aqui os esforços para a preparação do almoço de Natal de uma família da burguesia paulistana cinco meses após a morte do pai, em que não pode faltar o tradicional peru assado. A narrativa é muito mais do que uma crítica ao comportamento de uma tradicional família patriarcal dos anos 1940: deve ser vista também como um ótimo exemplar de como se escrever um conto pra lá de interessante. MUITO BOM

Olhos de cão azul (1947) - Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), colombiano. Ramal destaca que nesse conto Garcia Márquez “submerge na busca de uma outra realidade, menos previsível, absurda e fantasiosa, que muitas vezes o ser humano encontra nos sonhos. Nessa outra realidade, depara com o inevitável: a morte vislumbrada através do onírico.” O conto dá título ao livro lançado aqui em 1998 pela editora Record. BOM

Lenda da Tatuana (1930) - Miguel Angel Asturias (1899-1974), guatemalteco. Em 1930 Asturias lançou um livro em que compilava lendas de seu país. A Lenda da Tatuana é uma delas, definida por alguns estudiosos tanto como um poema quanto uma história onírica. Daí que não é fácil para o leitor comum acompanhar esse texto característico do “maravilhoso real” de Astúrias, que adotava esse termo para o que escrevia, em vez de realismo mágico ou fantástico. BOM

Yzur (1926) - Leopoldo Lugones (1874-1938), argentino. O narrador, proprietário do chimpanzé Yzur, acredita, como os antigos javaneses, que os macacos têm capacidade de falar, igual aos humanos, mas espertamente se abstêm disso para que não sejam colocados para trabalhar. Decidido, o homem estuda o primata com profundidade e tenta de todas as maneiras ensinar Yzur a falar. Isso vai terminar mal, claro. MUITO BOM

A almofada de penas (1917) - Horacio Quiroga (1878-1937), uruguaio. Esse pequeno conto com pitadas de realismo fantástico já se tornou um clássico do terror: jovem esposa vai definhando em seu leito de morte, para desespero do esposo e de seu médico, que não encontram explicação para o que se passa com ela. História também conhecida como O Travesseiro de Penas; nele reside a origem do mal da mulher. BOM

O corcundinha (1933) - Roberto Arlt (1900-1942), argentino. Nessa narrativa escrita nos anos 1930, portanto muitos anos antes do politicamente correto, o autor trabalha com diversos temas de sua literatura, como aponta Ramal: “a angústia, a humilhação, a marginalização, a hipocrisia da sociedade burguesa, o fastio e o cansaço como geradores das condições sociais mais negativas, além da mulher como objeto simbólico de perversão.” É ler para crer... BOM

O trovão entre as folhas (1953) - Augusto Roa Bastos (1917-2005), paraguaio. No resumo de Ramal, esse conto “relata a história pessoal do pasero (barqueiro) Solano que se sacrifica pelo seu povo, dotado de um forte sentido de justiça social. O personagem encarna o sentido daquilo que a sabedoria popular repete: "os justos não podem morrer, vão para outra vida".” Tem cenas chocantes de violência na luta contra a tirania patronal levada a cabo por Solano e outros empregados de uma usina de açúcar massacrados por exploração e injustiças. Trabalho escravo permanece na América Latina, notadamente em algumas regiões do Brasil... MUITO BOM

O Aleph (1949) - Jorge Luis Borges (1899-1986), argentino. Como alguém já resumiu muito bem, há no sótão da casa de um amigo do narrador um ponto onde é possível ver todo o universo, seu passado e futuro, acredite em Borges. É o Aleph, “primeira letra do alfabeto hebreu, a que o conduz à origem, num maravilhoso círculo literário onde tempo e espaço, imaginação e realidade, infinito e imediato são conjugados para sondar o sentido do mistério maior.”, nas palavras de Ramal. BOM

Dia de domingo (1959) - Mario Vargas Llosa (1936), peruano. Dois jovens amigos que disputam o amor de uma mesma moça, depois de muita bebida e comida num domingo à tarde com outros amigos, resolvem estender essa disputa também para o nado no Pacífico, num dia frio, cinzento e nebuloso em Lima. Algo acontece, e eles aprenderão uma lição inesquecível nesse dia. BOM

Lido entre 08 e 13/10/2020.
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