Polly 29/07/2022
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra: uma leitura sem fim (#177)
Esta foi a primeira vez que li Mia Couto. E li, assim, sem nem saber como era. Sabe quando você escuta diversas vezes a mesma afirmação e aquilo acaba te convencendo? Foi meio que isso. Já tinha ouvido de tanta gente que ele é um autor espetacular, que isso me bastou para ter curiosidade de ler. Não procurei sobre o melhor livro para começar, nem nada do tipo. Vi o nome do autor e esse título belíssimo, e foi suficiente.
Acho que concordo com todas essas opiniões que ouvi. No entanto, falar só isso não vai te preparar para essa escrita, ao menos, não para essa história. A palavra mais adequada para definir meu sentimento em relação a este livro é “esquisito”, porém é esquisito de uma maneira boa. A narrativa incomoda e, até agora, eu não sei dizer por quê. Tem um quê de magia durante toda a história e isso ao mesmo tempo que te intriga, também te conquista.
Enquanto lia, eu só lembrava de Cem Anos de Solidão do Gabo, embora eles nada tenham a ver um com o outro. É que a escrita de Couto me faz lembrar da prosa poética meio descompromissada de Gabo. Eles falam sobre coisas fantásticas como quem fala sobre ir à padaria e encontrar um amigo. A vida vira um milagre fantástico a cada página.
Mia Couto fala tanto nas entrelinhas e com uma linguagem tão enigmática que cheguei ao fim do livro com a impressão de que não o havia terminado. A sensação de sentir o livro e de continuar lendo durou por dias. Foi impossível começar outro em seguida. Precisei terminar de lê-lo, ainda depois de ele já ter voltado à estante. E é provável que numa releitura, que encaro como necessária, daqui a alguns anos, eu seja novamente tomada pelos mesmos sentimentos de dessa vez, ou talvez por outros completamente diferentes. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra é uma leitura sem fim.
Outra coisa importante a comentar sobre a narrativa é que os neologismos também fazem parte dela. Sua escrita é uma verdadeira alquimia de palavras. Confesso que demorei a entender que aquilo não eram apenas palavras que eu desconhecia, mas que, na verdade, eram criação do autor. O estranhamento é inevitável, mas a cada página isso vai ficando mais natural.
Sobre a história, posso falar que ela é forte. Te propõe a refletir sobre o luto, sobre traumas, sobre lacunas da alma. Mariano volta a Luar-do-Chão para se reencontrar no que nem chegou a conhecer. Arrancado do convívio familiar ainda na infância por motivos que só vamos descobrindo ao longo da leitura, Mariano não precisa apenas enterrar o avô; ele precisa também enterrar os fantasmas do passado, um eu que ele nem mesmo chegou a ser. Os monstros embaixo da cama sairão todos em plena luz do dia, e não só os de Mariano, mas de todos os que vieram antes dele.
Enfim, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra é uma história que vale a pena conhecer.