Lucio 15/03/2017
Recuperando o ceticismo, após Descartes, a partir do empirismo de Locke
Este é mais um clássico empirista. Hume, já mais amadurecido em sua obra, resolve estabelecer os fundamentos do conhecimento humano e, com isso, dirigi-lo para o que realmente lhe é pertinente para, com isso, evitar todo tipo de superstição e malogro. O filósofo é basicamente um empirista. Boa parte de suas premissas estão escondidas nele e explicitadas em Locke, Berkeley e Bacon. Herda do primeiro as noções de ideias simples e compostas, bem como as mesmas bases para afirmar que todo conhecimento inicia nos sentidos. De Berkeley, Hume adquire a noção de que não podemos fazer abstrações e, com elas, conceber ideias gerais e abstratas. Hume abre algum diálogo crítico com Malebranche e Descartes, embora mire suas armas contra escolásticos mais do que a quaisquer outros, como parece ser a moda no pensamento moderno. Estranhamente, ao desafiar os inatistas Hume praticamente ignora Leibniz e Spinoza. O seu diálogo com a filosofia antiga se dá basicamente em relação aos helenistas e imperiais (epicuristas, pirrônicos, estoicos). Há menções tímidas a outros autores, claro, mas as principais referências são essas. Hume demonstra grande erudição em assuntos clássicos e até eclesiásticos, citando vários milagres aventados na história secular e sagrada.
Hume acrescenta a noção de vivacidade, de força, que Locke não havia visto. Ele entende que as ideias originais, vinda dos sentidos, paixões e afins, são mais fortes e vivazes, e o que deriva delas, os pensamentos, são mais fracos. Outra observação pertinente é que a associação de ideias se dá por meio de três princípios: semelhança, contiguidade e causa e efeito. Por eles, Hume acredita que formamos todas as nossas ideias. E dá especial atenção a causa e efeito. Daí nota que todas as coisas que conhecemos ou são relações de ideias - coisas típicas das ciências matemáticas -, que não podem deixar de ser o que são pois o são por definição e ainda que não existissem na realidade ainda assim existiriam como conceito não podendo ser imaginadas ao contrário; e questões de fato, que podem ser imaginadas ao contrário do que são. Logo, vincula nosso conhecimento às questões de fato à causalidade, e observa que na relação de causa e efeito tudo o que percebemos é que um evento precede a outro. Retemos isso na memória e na medida em que ampliamos a experiência julgamos que outras coisas semelhantes produzirão os mesmos efeitos observados no passado, ou seja, que o evento semelhante ao observado no passado será seguido por outro que o seguiu. O que faz com que façamos tal antecipação por meio do espírito é simplesmente um instinto natural que nos faz tomar o hábito, o costume, e o aplicar ao futuro. Com esse conceito de causalidade, Hume segue investigando várias questões epistemológicas e afins. Aliás, observa que há graus de confiabilidade para as inferências, desde as coisas mais certas a coisas prováveis e, aí, desenvolve a noção da probabilidade.
Aproveitando o conceito de causalidade, Hume explora os polêmicos assuntos da liberdade e necessidade (basicamente defendendo que todos admitem que a natureza humana, somada a determinadas condições, reage espontaneamente, com a sensação de liberdade, mas de forma bem determinada), a questão dos milagres (estabelecendo a priori a noção de que experimentamos a regularidade da natureza e isso serve de argumento contra a possibilidade dos milagres), a questão da teodiceia (afirmando basicamente que o que sabemos sobre os deuses é o que está explicitado nos efeitos - se é que conhecemos alguma coisa sobre eles - de modo a ser inadequado atribuir a ele alguma qualidade além da que pode ser deduzida nos efeitos, de modo a ele não poder ser mais justo e nem podermos esperar por um mundo melhor do que esse). Hume termina o livro propondo justamente que, diante das críticas cético-pirrônicas a razão se coloca em seu lugar e percebe que não foi feita para discutir metafísica e teologia, mas para lidar com questões práticas.
Este é um clássico. Todo estudante de filosofia deveria ler a obra com atenção pois lida, com enorme sagacidade, com vários dos mais importantes temas da epistemologia, metafísica e filosofia da religião e moral. Discordando ou não de Hume, temos que lhe dar a devida importância e lidar com seus argumentos caso queiramos ser levados a sério. Seus argumentos têm sido recuperados por filósofos do século XX e XXI, de modo que tem sido considerado muito atual e competente. Particularmente os metafísicos escolásticos deveriam lidar com Hume se quiserem permanecer com seu tomismo ou escola empirista afim. Kant também foi impactado pelo pensamento de Hume - desperto de seu sono dogmático, como colocou - e isso é mais um incentivo para olharmos de perto esta pequena obra.
A obra, claro, apresenta problemas. Está basicamente fundamentada no empirismo e permanece ou cai com o mesmo. Além disso, ignora todo o aparato crítico que Kant e companhia demonstraria. É ingênuo em relação à influência das pressuposições na interpretação da realidade e de como as adquirimos, bem como em relação aos papeis epistemológicos de uma cosmovisão. Ignora, também, o papel das afeições na construção teórica, exceto quando fala de seus aspectos negativos no fanatismo religioso. Todos esses problemas nos furta a adesão a suas ideias, embora respeitemos o fôlego com que as defende. Como inatistas e pressuposicionalistas, Hume não nos atingiu. Já o conhecíamos mas agora sua obra foi analisada com cuidado e os argumentos apreendidos com muito mais vivacidade. Foi, aliás, um dos desafiantes que balançaram nosso tomismo de outrora. A propósito, poderíamos dizer que ele desafia severamente o empirista cristão com problemas espinhosos que, se não forem resolvidos, levam ao ceticismo e ao agnosticismo. Agnosticismo não só relacionado a Deus mas à própria ciência e tudo o mais que não disser respeito às questões matemáticas ou pragmáticas.