Sebo Por Todo C 08/08/2014
VIAGEM VERTICAL
A viagem vertical, Enrique Vila-Matas
Cosac Naify, 2010, 252 páginas
Algumas vezes me parece que nascemos para ter medo. Um dos meus é imaginar como seria ser surpreendida pelo destino, desviando a minha rota de existência estruturada por algum tortuoso caminho desconhecido.
Conhecemos Federico Mayol, o protagonista, já com 77 anos, afastado do trabalho como presidente de uma rentável companhia de seguros, agora capitaneada por seu filho mais velho.
Catalão, nacionalista, Mayol tem como sua maior frustração ter parado os estudos aos 14 anos, resultado do caos instalado na Espanha, no período da Guerra Civil.
Sua mulher e três filhos são testemunhas de sua bem-sucedida vida nos negócios, apesar da pouca instrução.
Federico Mayol vê seu mundo estruturado e confortável vir abaixo ao ser rejeitado por sua mulher, exatamente um dia após a comemoração das bodas de ouro. Busca ajuda junto ao filho predileto, o primogênito, e o descobre como um homem infeliz. Nada pode esperar de sua filha, já que a recrimina por buscar emoção no adultério. Do caçula, Mayol recebe a crítica de ser um homem bem sucedido, porém inculto. Canaliza para esse filho toda a raiva, muito mais do que à sua mulher que o abandonara na velhice. Presunçoso, egocêntrico, pintor medíocre são as qualificações dedicadas ao caçula.
Pois Mayol, que já não tinha como característica a suavidade e o bom humor, alicerca a descrença e o rancor na sua visão da vida. Não lhe resta, então, outra saída a não ser partir em viagem: de Barcelona para Lisboa, seguindo para a cidade do Porto e, depois, para a Ilha da Madeira. Nada lhe satisfaz e a solidão pesa-lhe. Na Ilha da Madeira encontra um sobrinho de sua mulher e participa de um grupo de leitura, ele, acusado de ser inculto pelo filho e realmente pouco afeito à companhia dos livros.
E é nesse ponto que Federico Mayol encontra seu destino de personagem.
oOo
O livro Viagem vertical estava na prateleira de recém-adquiridos da Biblioteca Mário de Andrade, apesar de ser uma edição de 2004. Folheei as primeiras páginas e comecei a leitura descompromissada por ali mesmo. Meu horário disponível passou ventando e eu lá estava pela página 30, empolgada pela escrita admirável de Vila-Matas.
Mas já se disse que escrever bem é condição primeira para qualquer escritor e, naquele momento, era condição suficiente para eu emprestar o livro da querida biblioteca.
Confesso que além da boa escrita, o personagem ou personagens, mais do que a trama, são peça fundamental para meu encantamento com a leitura. Por exemplo, não encontro prazer na leitura de Ian McEwan, apesar das histórias únicas e pra lá de bem narradas. O fato é que McEwan extrai dos seus personagens os piores sentimentos humanos.
É a vida? Pode ser. Mas passados um ou dois títulos já não quero mais leituras do autor.
Voltando à Viagem Vertical, Mayol é ranzinza, mal-humorado, impaciente, presunçoso e, na sua viagem vertical, lhe cabe um papel solitário.
Se gostei da leitura? Patinei em diversos momentos, tantos quanto Mayol em sua busca que pode ser infinita até o término de sua existência, mas poderia ser mais curta em número de páginas.
Trecho predileto, p. 226/227
“’Eu sim, sou da Atlântida.’, me diria Mayol naquele mesmo dia, quando nos encontramos às seis da tarde. Seus olhos tinham um brilho estranho. Como não entendi a que se referia ao dizer que era da Atlântida, pedi explicações, e foi quando ele começou a me falar obsessivamente do filho Julián e de suas pretensões artísticas e de como era imbecil e da carta que naquela mesma tarde pensavam mandar a Barcelona, comunicando-lhe que seu pai, ele sim, era realmente da Atlântida, e que pretendia voltar à pátria submersa, da qual nunca devia ter saído, aproveitando sua excepcional capacidade para afundar.
-- Como pretexto de ser um gênio que algum dia iria triunfar – disse-me Mayol --, estive pagando todos os seus gastos até muito pouco tempo. E sabe como me agradeceu? Me tratando como a um pobre negociante inculto. Merece minha vingança.
Nunca o tinha ouvido falar com tamanho rancor de um filho. Confirmei, por outro lado, através de sua obsessiva descrição da última visita ao ateliê do pintor de portos metafísicos, que num só dia a maneira de falar de Mayol havia se tornado especial. Mesmo que não chegasse ao extremo daquelas pessoas que são incapazes de descrever qualquer situação isolando-a de uma atividade geral – esse tipo de gente que para dizer como entrou numa casa precisa explicar que limpou os sapatos, tocou a campainha, empurrou a porta e entrou, e a porta se fechou por trás dela --, Mayol passara a pertencer – talvez influenciado por minhas palavras da noite anterior, quando disse a ele que a vida de alguém não existia se não era narrada e fixada num papel – a essa classe de indivíduos que julgam cada cena de sua vida um grande acontecimento, do qual deve-se narrar grande parte dos pensamentos, palavras e ações que contém.”
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