João Moreno 18/06/2020“Nós nem cremos que escravos outrora / tenha havido em tão nobre país”, hino da República brasileira, 1890
Lilia Schwarcz é historiadora e antropóloga. Em suas obras, a escravidão e as suas materialidades aparecem como peças-chave para o entendimento do Brasil. Em Nem preto nem branco: muito pelo contrário, a história do país nos é reapresentada através da ‘raça’: apesar de no singular, quais são os seus significados? Como o conceito foi apreendido, ao longo do tempo? Entender tais desdobramentos históricos ajuda-nos a enfrentar os desafios do presente?
Para todos esses questionamentos, Lilia Schwarcz “vai dizer” um tremendo SIM, pois
“Impressionante a força das cores em nossas expressões, e como elas fazem às vezes de dublês das raças. Dito de outra maneira, para o bem e para o mal, a mestiçagem é destino. Marca de identidade ou da falta, ela sempre deu o muito o que falar (e pensar)” (SCHWARCZ, 2012, p. 119-120)
Em tempos de “Vidas negras importam”, aprendi, com a obra, que isso não passa de uma mentira ou uma realidade a se alcançar, pois, no Brasil, desde sempre, “a carne negra é a carne mais barata do mercado”.
Para ser breve e, nesses curtos caracteres, tentar explicar o “racismo à brasileira”, preciso falar das tais “Teorias Raciais”. Outro historiador, Harari, já apontava a necessidade de grandes justificativas para os grandes feitos da humanidade. O que ele chamou de “ordem social imaginada” nada mais é do que os nossos mitos, as nossas crenças, a nossa moral ou a religião. Não ‘existem’, de fato, como coisas ‘reais’, mas a crença compartilhada nesses aspectos faz com que possam existir e, assim, criar materialidades.
Um exemplo: as fronteiras que separam países realmente não existem, pois não havia uma divisão, a priori, pois são “linhas imaginárias”, mas o nacionalismo, uma “ordem social imaginada”, foi o responsável por criar coesão entre diferentes povos, dar sentido a exércitos, criar a noção de pátria e de idioma comum, inventar uma “cultura própria”, traçar divisões físicas, desenvolver países etc etc etc. Materialidades, entendem?
Voltando à ‘Nem preto nem branco, muito pelo contrário‘, é preciso lembrar que a escravidão transatlântica foi uma atividade essencialmente capitalista (HARARI, 2017, SILVA, 2018). Por mais que tenha havido escravidões, é necessário entender que a monocultura de açúcar trouxe outro dinamismo à prática.
“A partir de 1500, desenvolveu-se um comércio de escravos extremamente lucrativo (…) europeus que acumularam fortunas incalculáveis que financiaram a industrialização na Inglaterra e depois nos Estados Unidos, nos Países Baixos, na França, na Alemanha, na Suíça, entre outros locais. Até o século XIX, portanto, a captura e o tráfico de escravos negros trazidos da África para América favoreciam a acumulação de grandes capitais” (MESGRAVIS, 2018, p. 37).
Durante a escravidão, o discurso religioso foi a “ordem social imaginada” que justificou a dominação de um povo sobre o outro. O preto africano era amaldiçoado e, por isso, poderia ser escravizado. Por sua vez, no século XIX, já com a abolição, o pensamento científico estava em voga. Darwin havia publicado o seu trabalho sobre a origens das espécies e a biologia era a ciência da “moda”, gozava de grande respeito dos europeus. Era a ‘ordem social imaginada’ da vez.
É no contexto do fim da escravidão, com a iminência do chamado Segundo Imperialismo europeu e com as desigualdades sociais causadas pela sociedade industrial capitalista, que vai florescer o Darwinismo Social. Apesar do nome, a ‘teoria’ não estava vinculada a Darwin. Com inspirações lamarckianas, dentro dessa perspectiva, a vida social poderia ser explicada a partir de uma analogia da explicação biológica: o indivíduo era responsável por sua própria evolução. Assim, a miséria causada pelos diferentes processos históricos passava a ser justificada a partir de uma ótica individual. “Você é o responsável pelo seu próprio fracasso”, diziam, e, sim, há uma semelhança muito grande entre certas definições de Darwinismo Social com o que certos setores resolveram chamar de ME-RI-TO-CRA-CI-A. [1]
Para Moraes (2018), as ‘Teorias Raciais’ são justificativas conservadoras que visavam deixar intocado as relações de poder e o status quo. Na prática, serviu como “ordem social imaginada” para o Imperialismo no continente africano (ver imagem), mas também para a forma como os donos e senhores de escravos trataram a abolição e os negros libertos.
E só depois de tudo isso é que podemos, de fato, entrar nas discussões promovidas por Schwarcz (2012), em ‘Nem preto nem branco, muito pelo contrário’. Preciso afirmar que. a priori, a minha intenção era fazer um resumo detalhado. Todavia, diante de alguns imprevistos, como prazo e ânimo, vou apenas pincelar algumas observações da autora para demonstrar, como foi demonstrado na obra, que o racismo brasileiro conforma a identidade nacional do país. O que quero dizer com isso, assim como apontou Lilia Schwarcz (2012), é que o racismo brasileiro é específico, pois se apresenta de forma peculiar durante os diferentes processos históricos brasileiros; é nocivo porque não é explícito na forma de leis ou escrachado, com segregação espacial normativa, na esfera pública; persiste porque ambivalente: ao mesmo tempo em que a mestiçagem (samba, mulata, candomblé, baiana, feijoada, futebol e os jogadores pretos) é apropriada como símbolo nacional, no Estado Novo, as marcas da escravidão são apagadas, numa espécie de “boa escravidão”, agora legitimada por uma análise culturalista da escravidão, com Freyre e outros.
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Escravidão. Branqueamento do país via políticas de migração. Darwinismo Social. Abolição. Apagamento. Mestiçagem. Mestiçagem como a degeneração do país. Estado Novo. Construção de uma “identidade nacional”. Mestiçagem. “Boa escravidão”. Apagamento do preto e das mazelas da escravidão: “Nós nem cremos que escravos outrora / tenha havido em tão nobre país” (hino da República, 1890) “Preconceito de ter preconceito” e “moral católica”, aquela que se indigna com o racismo, mas se acostuma com a sua prática, pois acostumada a conviver com esquizofrenia de se devotar ao sagrado (noção de paraíso) enquanto se chafurda no profano (dia a dia, prazeres da carne). Todas essas questões vão influir no conceito de “cor e raça na sociabilidade brasileira”. O preconceito brasileiro será sempre negado, pois está presente no outro, uma vez que nos encaramos como “democracias raciais ilhados por racistas de todos os lados”. Com a figura de linguagem, Schwarcz (2012) demonstra uma sociedade que percebe o racismo, mas nega o praticar. Como a noção de “raça” – social, pois não existe raça para a biologia – está ligada ao biotipo (cor da pele, traços do rosto etc) , “ser preto” (ser considerado preto, pois a identidade nacional brasileiro vai imputar características ruins ao preto) também está ligado à posição social e econômica. É comum pretos “embranquecerem” a depender do status, pois num país que tem “forte ‘preferência’ para o branco ou por tudo que “puxa para o mais claro”, joga-se o preto para o ponto mais baixo da escala social” (SCHWARCZ, 2012, p. 104-105).
“Os negros que não querem se definir como ‘negros’ e têm uma condição um pouco melhor tendem a se autodefinir como ‘escuros’ ou, mais ainda, como ‘pardos’ ou ‘morenos’. Algo parecido acontece com os mestiços: aqueles com uma condição melhor na rua tendem mais a se autodefinir como brancos. Nesse sentido o termo pardo forma uma categoria-resto que contém os mais escuros ‘sem jeito’ — aqueles negros com renda, escolaridade, e status baixos demais para se aventurarem no jogo dos códigos de cor e do status […]”.
Retirado de L. sansone, “Pai preto, filho negro — trabalho, cor e diferenças de geração”, Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, 1993, n. 25, p. 88.
Quase por fim, gostaria de ressaltar que o mito do “racismo brando” só é possível diante das próprias características do racismo brasileiro. Não estar explicitado no ordenamento jurídico não torna o racismo brasileiro “melhor”, como dizem, pois o silenciamento significa, na prática, apagamento. Significa poder abdicar de todas as responsabilidades sobre os atos provocados por ele, pois, para alguns, por não estar visível, “racismo não existe”. É “mimimi”. Ressalto também que o “racismo brasileiro” tem um caráter inegável de classe e que não entender essa dimensão é não dar o ‘tratamento’ adequado à questão. Por fim, em relação à questão do racismo como conformador da nossa identidade e da sua relação com as classes sociais,
“Já Florestan Fernandes diagnosticava a existência de um racismo dissimulado e assistemático, percebido a partir dos dados estatísticos. Nos resultados do censo de 1950, o sociólogo encontrava não só diferenças regionais (com uma grande maioria de negros e mulatos no Nordeste) como concentrações raciais de privilégios econômicos, sociais e culturais. O conjunto das pesquisas apontava, portanto, para novas facetas da “miscigenação brasileira”. Sobrevivia como legado histórico um sistema enraizado de hierarquização social que introduzia gradações de prestígio com base em critérios como classe social, educação formal, localização regional, gênero e origem familiar e em todo um carrefour de cores e tons. Quase como uma referência nativa, o “preconceito de cor” fazia as vezes das raças, tornando ainda mais escorregadios os argumentos e mecanismos de compreensão da discriminação. Chamado por Fernandes de “metamorfose do escravo”, o processo brasileiro de exclusão social desenvolveu-se a ponto de empregar termos como preto ou negro — que formalmente remetem à cor da pele — em lugar da noção de classe subalterna, um movimento que com frequência apaga o conflito e a diferença.” (SCHWARCZ, 2012, p. 72).
NOTAS
[1] A título de curiosidade, certa vez fiz uma enquete na rede social Instagram. Primeiro, perguntei se acreditavam em ME-RI-TO-CRA-CI-A. Poucos responderam e, dentro destes, alguns responderam que sim. Na sequência, postei a definição de Moraes (2017) sobre Darwinismo Social, sem dar nome ao conceito. Em seguida, perguntei, mais uma vez, se o a conceituação anterior – do Darwinismo Social segundo Moraes (2017) – poderia ou não ser aplicada para o conceito de Meritocracia O interessante disso tudo, sem nenhuma pretensão científica, é claro, foi constatar que alguns adeptos da ME-RI-TO-CRA-CI-A confundiram os conceitos e afirmaram que sim, Darwinismo Social pode substituir a Meritocracia brasileira.
REFERÊNCIAS
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017.
MESGRAVIS, Laima. História do Brasil Colônia. São Paulo: Contexto, 2018.
MORAES, Luís Edmundo Moraes. História Contemporânea: da Revolução Francesa à Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Contexto, 2017.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
SILVA, Juremir Machado da. Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na Imprensa e no imaginário social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
No link, abaixo, trago algumas anotações sobre o livro.
site:
https://literatureseweb.wordpress.com/2020/06/18/nos-nem-cremos-que-escravos-outrora-tenha-havido-em-tao-nobre-pais-hino-da-republica-brasileira-1890/