Rolando.S.Medeiros 20/08/2022
Clássico Essencial da Literatura Latina
Pode soar pedante para alguns, ouvir alguém dizer que, por exemplo, um proto-romance espanhol de 1554, escrito por um completo anônimo, seja melhor, tenha mais dimensão psicológica, mais técnica, e mais apuro que grande parte do que se escreve atualmente.
Tape o sol se quiser, mas é a mais pura verdade.
Divido em pequenos tratados, em uma falsa-epístola — ou epístola falada -, que delineia, mas não limita a narração em primeira pessoa; o anônimo-autor astutamente, deixando com que o próprio Lázaro narre a sua história, vai salpicando detalhes, que semeiam a terceira pessoa para a ascensão do romance.
O próprio Lázaro como narrador-personagem é quem conta a sua conturbada história de vida, desde o seu nascimento, a beira do Rio Tormes, até o momento da escrita da carta, que é o livro que temos em mãos; outro de seus recursos, já que nos tempos de publicação, acreditava-se que era realmente uma carta, e que o Lázaro era realmente uma pessoa, o que com certeza ajudou na fixação da história no imaginário daquele povo.
Mas não só por isso. É realmente uma narrativa agradável. Presumimos, pela idade, que seja densa, mas o anônimo autor é bastante comedido, sabe como conduzir uma história, com supressões engenhosas, pouca exposição, e sem explicitação desnecessária. Ele merge tudo com a narração em primeira pessoa, com a memória do Lázaro, o tom da carta, com uma astúcia a par do personagem.
Um detalhe que me agradou, mas que na reta final vai se perdendo, é que ele não lhe entrega o ouro, mas ele está lá para ser encontrado. Seja através dos detalhes intrínsecos da narrativa, ou da técnica e agudez literária com que venho me repetindo.
A exemplo do primeiro, no final do livro, paira no ar uma suposta traição (digo suposta para quem ainda o vai ler), que nos primeiros capítulos, já havia surgido, sutilmente e amarrado à narrativa, ao Lázaro, ainda ingênuo aos relacionamentos:
"Assim passamos adiante pelo mesmo portal, e chegamos a uma estalagem, à porta da qual havia muitos chifres pregados à parede, onde os arrieiros atavam seus animais e, quando procurava reconhecer se era ali a estalagem onde todos os dias ele costumava rezar pela estalajadeiro a oração da Emparedada, agarrou um chifre e, dando um grande suspiro, disse:
— Oh, coisa ruim, e ainda pior que o feitio! Quantos desejam pôr você na cabeça alheia e quão poucos desejam tê-lo, sequer ouvir o seu nome!
Como o ouvi, perguntei:
— Tio, o que é que está dizendo?
—Cale-se, sobrinho, que isto que tenho nas mãos um dia lhe dará mau almoço e pior jantar.
—Não o comerei eu —disse — e ninguém me dará para comer."
A comédia, tão comentada, e que pode ser vislumbrada nessa cena, não bateu para mim, e há uma dose de repetição conforme a narrativa vai afunilando (a maioria dos problemas desse livro provém desta mesma raiz); em contrapartida, também há a justaposição da dicção religiosa com a crítica à própria decadência da religião e da sociedade.
O meu tratado-capítulo favorito, é quando o Lázaro imerge na psicologia do Escudeiro com quem passou um tempo, de certa maneira semelhante à um narrador em terceira pessoa mergulhando em um personagem. Bato na tecla que a engenhosidade narrativa é digna de nota.
Este Escudeiro é um homem com delírio de honra/grandeza, disassociado com a realidade, movido pela sociedade externa; que mora em uma casa completamente vazia, passa dias e dias faminto, mas toda manhã, lava o rosto, se arruma todo, põe a espada ao lado do corpo, e saí altivo pelas ruas, não suportando desaforos ou falta de respeito. Prefere passar fome do que revelar a sua pobreza, não pede ajuda ou esmolas.
Em contrapartida, em questão de relacionamento, ele também é o que melhor se dá com o pequeno Lázaro: se nos compadecemos do garoto, o garoto se compadece do Escudeiro; e também é dele que sai uma das melhores passagens do livro, que ainda é voga na sociedade:
"Vim para esta cidade pensando que encontraria aqui melhores condições, mas não aconteceu como eu esperava. Cônegos e dignitários da igreja encontro muitos, mas é gente tão bitolada que nada no mundo podería tirálos de sua limitação. Cavalheiros de meia-tigela também me solicitam, mas dá muito trabalho servi-los como escudeiro. Porque é preciso virar coringa e, senão, dizem: “Vá com Deus”. Geralmente, os salários são pagos atrasados e o mais certo é que trabalhe apenas em troca de comida. Já quando querem ficar em paz com sua consciência e pagar o nosso suor, chamam-nos à antecâmara e oferecem-nos um suado gibão, ou uma capa ou um saio surrados. Até quando um homem se põe a serviço de um senhor de título, também passa necessidades. Mas, porventura, não terei eu aptidões para servir e contentar a um desses? Por Deus, se topasse com um, penso que cativaria a sua maior confiança e que lhe prestaria mil serviços. Porque eu sabería mentir-lhe tão bem como qualquer outro e agradá-lo às mil maravilhas. Havería de rir muito com as suas graças e hábitos, ainda que nada valessem. Nunca lhe diría palavra que o desgostasse, mesmo que fosse necessário para seu bem; seria muito diligente na sua presença, em palavras e atos. Não me mataria em fazer bem aquilo que ele não visse. Eu ralharia com os criados, onde pudesse ouvir-me, para que ele pensasse que eu zelava por seus interesses. Se ele repreendesse algum criado, eu atiçaria a sua ira com agudas alfinetadas, que parecessem em favor do culpado. Falaria bem do que para ele estivesse bem e, ao contrário, seria malicioso, mofador; e delataria as pessoas da casa e os de fora dela. Bisbilhotaria e procuraria saber da vida alheia, para lhe contar tudo, e teria muitos outros dotes semelhantes, que atualmente se usam nos palácios e que muito agradam aos senhores. Eles não querem ver em suas casas homens virtuosos, pelo contrário, detestam-nos e os menosprezam. Chamam-nos de tolos e dizem que não são pessoas de negócios, nem merecem a confiança do senhor. É assim que, hoje em dia, procedem os astutos, conforme digo, como eu procedería no lugar deles (...)"
De outro lado, um dos pontos a criticar, cuidadosamente, é o caráter panfletário da história, feita justamente para correr de mãos e mãos, o que pelo conteúdo mais a disseminação, na Inquisão Espanhola, deu vazão para a censura (de centenas de anos!). Também este caratér da história uma das razões para o escritor ter preferido o anonimato.
O personagem-narrador faz duras críticas ao clero e à "baixa sociedade" religiosa espanhola, através de clérigos avarentos, falsos pastores, e falsos milagres; em relação a esse último, com direito a todo um artificie, um teatro intricado, elaborado, que faz com que uma falsa punição divina soe real, com fins — para surpresa de um total de zero pessoas — comerciais.
No fim, quando a crítica está feita, o narrador amarra tudo muito frouxamente, e no final a boa, divertida e engenhosa narração fica como plano de fundo dessa crítica à religiosidade; soou para mim como se a história tivesse sido abandonada.
Mas, até nas partes ruins, há partes boas. É também no final que culmina todo o foreshadowing deixado pelo velho-cego, e também é onde o narrador “se desprende” do Lázaro — não literalmente — com um tom meio naturalista, que o mostra resignado, quando o rapaz já crescido, escolhe a ignorância, o conformismo.
É notável, também, pois, a pintura da vida do Lázaro é tão interessante, e acostumamo-nos tanto com a voz sarcástica do garoto, que nos apiedamos dele até nessa má decisão, em vez de terminarmos incomodados.
Notas aleatórias
— Um caso onde o clássico literário se integra com a cultura; por exemplo, até hoje há uma estátua em Tormes de Lázaro e o o Velho Cego, na mesma linha, Lazarillo, entrou no dicionário espanhol, significando um "guia de cegos".
— Também uma pedra basilar no gênero romanesco, com meio milênio de idade; e, digno de nota, uma leitura fluída, ainda atual, que pode ser despachado numa assentada, com o acompanhamento que quiser. Sinceramente, não vejo razões para não lê-lo.
— Além de ser uma das primeiras manifestações do gênero romanesco, inaugura também o gênero picaresco, precedendo o grande Quixote, que pisa sob as fundações do nosso anônimo-narrador; há uma suposição de que o adjetivo pejorativo "picareta" do nosso idioma, tenha surgido daí, do pícaro. Porém, como sabemos, são muitos anos e uma travessia idiomática conturbada a mutou; Lázaro não é bem o "picareta", no sentido que concebemos hoje em dia, ele é astuto, irônico, bem humorado, que só quer encher a barriga; não o faz por maldade ou ganância.
— Li na antiga edição da Collecion Orellana, muito boa; bons paratextos, e uma ótima tradução do Pedro Câncio da Silva.
— O anônimo-autor é bastante culto, há muito dos clássicos gregos, romanos e até hebraícos em sua escrita; e também parece claro que ele de certa forma tinha uma estreita relação com o clero.
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