Marc 29/08/2015
Schnitzler ganhou notoriedade no Brasil só depois que seu livro foi adaptado por Stanley Kubrick em “De olhos bem fechados”. Antes disso, que eu saiba, apenas algumas poucas edições que não chegaram a entusiasmar os editores. Era vienense, médico de formação e profundo conhecedor de psiquiatria, mas se destacou mesmo como escritor. Foi contemporâneo de Freud e muito já se falou sobre a relação entre os dois, sobre suas coincidências e discordâncias.
Freud tinha uma maneira bastante peculiar de conviver com influências, afirmando que pretendia manter-se isento, mas sendo capaz de citar longos trechos desses autores apenas de memória. Desconfio que aqui também fosse o caso, e que a negativa escondia na verdade uma profunda admiração.
Para Schnitzler havia um estágio em que mesmo acordados não somos capazes de raciocinar perfeitamente. Geralmente tomados pelo desejo, embora outras emoções possam influenciar também, parecemos ver tudo com clareza e raciocinar perfeitamente, mas simplesmente não conseguimos entender o que está se passando. É como se agíssemos de acordo com nossa visão das coisas (como sempre, claro), mas essa visão estivesse embaçada. Não podemos dizer se tratar de uma embriaguez, porque temos total domínio do corpo; parece que é a cabeça, ao contrário, que foge e não quer se deixar controlar. Esse livro é um pequeno estudo sobre esse estágio. Uma noite em que o protagonista não apenas se deixa levar por seu impulso inconsequente de ter relações sexuais com mulheres desconhecidas ou pelas quais não tenha afeto, como não percebe as fronteiras que vai rompendo nessas tentativas. O fato é que a divergência de Schnitzler com Freud em relação ao tema do inconsciente gerou uma riquíssima literatura, porque esse mundo nublado aparece em quase todos os seus livros, fazendo com que seus personagens sofram com a incompreensão dos eventos de que participam e só posteriormente possam avaliar com clareza o que se passou.
E o próprio fato que desencadeia as aventuras de Fridolin está dentro desse território nebuloso: a troca de confidências sexuais durante a intimidade do casal. A confidência de Albertine sobre o impulso de abandonar tudo certa tarde para seguir um oficial durante a estadia do casal em uma estação da costa dinamarquesa, simplesmente tira o chão de Fridolin. Tomado pelos ciúmes, mas principalmente por essa dúvida, do amor que sentia e acredita agora nunca ter sido correspondido, Fridolin vai atender um paciente próximo a sua casa e inicia uma jornada noite adentro. Já está posta, portanto, desde o primeiro instante a questão do desejo e sua relação com a morte (que não precisar ser necessariamente a morte do indivíduo, mas do desejo, porque este, mais do que tudo, teme a sua não realização). O desejo para que seja satisfeito, não pode ter freios, limites ou regras, mas também precisa da entrega do sujeito, ao menos momentaneamente. Essa entrega precisa ser mútua, sob pena de o relacionamento minguar e é essa pena que subitamente Fridolin sente. Seu desejo é cortado porque ele pensa que não há correspondência, que sua mulher o enganava, deitando com ele enquanto desejava outro. E a jornada, noite adentro de Fridolin estampa esse temor. Afinal ele não sabe mais se pode continuar a desejar uma mulher que pode não corresponder.
Falando em termos mais próximos da psicanálise, Fridolin percebe que seu objeto de desejo (sua mulher) também é um sujeito e se abala profundamente com essa descoberta. Daí, sem forçar muito a interpretação, podermos dizer que existe uma incipiente afirmação do feminino, que não quer mais se sujeitar a mero recipiente das fantasias masculinas, mas quer mostrar que também pode ser portador, ter um papel afirmativo. E isso faz com que essa obra seja de uma riqueza impressionante, a meu ver. Enfim, é o desejo de Fridolin que tenta resgatar sua posição, abalada pela afirmação do objeto e parte numa busca desesperada por esse lugar confortável, porque teme que o outro o suplante, que não saiba lidar com essa descoberta.
Portanto, não se trata de devassidão. Aliás, ao contrário, porque ao descobrir que a posição do outro (sua esposa) era a mesma que a dele (ao menos aos olhos da mulher), como continuar? O objeto está partido, o desejo começa a morrer. Fridolin só sabe investir em um objeto passivo, não é capaz de compreender que o outro sujeito pode ser naquele momento um objeto para ele, assim como ele para sua mulher e depois tudo seguir seu caminho normalmente. Mas nada será como antes amanhã...
Esse temor pode ser melhor expresso pela seguinte afirmação: o desejo procura consumir seu objeto. Ora, se Fridolin se reconhecia com prazer uma figura afirmativa, um homem que deseja e decide a posição que a mulher vai ocupar em sua vida ordenada, basta ela lhe mostrar que não é assim, que ela também deseja, para ele sentir vertigem. Sua busca por essa posição dominante, no entanto, é imediatista, não passa de mero impulso. Não há tempo para “maturar” um objeto e consumi-lo pouco a pouco. Tudo acontece rápido demais: ele se surpreende com a confissão de Marianne, que diz ama-lo, esbarra com um estudante na rua (fato banal, mas repleto de significado em sua mente perturbada), logo está na cama com uma prostituta (e não consegue efetivamente nada, porque na verdade não a deseja), depois presencia uma comédia ousada quando vai alugar uma fantasia para a festa e, por fim, na própria festa, não sabe como se comportar. Aqui acontecem os momentos mais absurdos de toda a noite. As pessoas fantasiadas enquanto as mulheres nuas pareciam ser entregues em sacrifício e a insistência de uma delas para que fosse embora porque sua vida corria risco. Tudo poderia ser apenas uma farsa, mas como saber? Todos esses eventos passam rápido demais, a ponto de não ser possível refletir sobre nenhum deles. A noite encerra, inevitavelmente, frustrações seguidas. E não deixo de pensar que Fridolin chega a essa conclusão, mas a evita, sob pena de ter que encarar novamente seu papel de macho dominante em crise.
Essa é mesmo uma noite memorável, que vai mudar para sempre sua visão da vida. O livro termina com uma imensa interrogação, uma dúvida sobre a real natureza do evento secreto de que participou. Mas independentemente disso, Fridolin percebe que existe toda uma outra existência que ele até então não suspeitava. Quem serão aquelas pessoas? As fantasias serviam para esconder sua identidade ou apenas para apimentar a noite? Nesse caso, era uma sociedade secreta de fetichistas, pessoas com poder e dinheiro suficientes para viver suas fantasias, mesmo as mais caprichosas? Se assim o for, sobra ressentimento por não poder usufruir a vida da mesma maneira que todos aqueles cavalheiros...
Mas não é só isso. No dia seguinte visita os mesmos lugares numa clara tentativa de ordenar o que se passou. Inutilmente, é preciso dizer. E quando está começando a aceitar que as pessoas não são nada do que ele pensava, se depara com novos comportamentos. É como se descobrisse que na vida privada, aquela que ele não tinha acesso e nem suspeitava existir, tudo fosse permitido; enquanto na vida social, apesar da contradição inequívoca entre um papel e outro, tudo pudesse seguir normalmente. Gosto de pensar isso, porque sub-repticiamente a novela introduz um tema muito importante: serão os vícios privados, virtudes públicas? É possível que um não resvale sobre o outro?
E embora esse tema pareça não ter relação com o outro, na verdade podemos voltar o olhar para a figura de Fridolin e compreender melhor o que Schnitzler está dizendo. O protagonista se vê como uma figura unidimensional. O que é na vida pública, o médico responsável, pai de família, esposo amoroso, é como se vê na vida privada e ponto final. Não existe, para ele, outro papel, um espaço para outro papel. Jamais poderia imaginar que seu desejo pudesse ser ferido, retirado de suas bases e sua figura impositiva questionada. Ele enxerga a sociedade como uma reprodução perfeita do íntimo das pessoas, não é sem importância o fato de passar a odiar sua mulher depois que ela lhe mostra, sem floreios, que as aparências guardam muito mais do que se suspeita à princípio. Fica atônito com essa descoberta e começa a acreditar que todas as mulheres não passam de umas fingidas, mentirosas. Mas essa maneira de pensar acaba se estendendo a todos e Fridolin pensa que no fundo é a perversidade que dirige o comportamento humano; a mera vontade de enganar, e se é assim, ele também vai fazê-lo.
Importante notar que não é mais a necessidade de se impor novamente como dominante que vai gerir seu comportamento. Depois que se convence da perversidade alheia, é apenas o ressentimento que o move. Como se, depois de ferido, precisasse de uma restituição de alguma maneira. O incidente com os estudantes expressa isso perfeitamente: um simples encontrão e a zombaria de alguns deles, ainda martelava no dia seguinte em sua cabeça, a ponto de imaginar que deveria ter pedido satisfação e desafiado o estudante para um duelo. De preferência de pistola. Enfim, há um grande vazio, uma ofensa gravíssima, mas Fridolin não sabe precisar onde está e seu ressentimento vai espalhando para todos.
Tenho sérias ressalvas a essa maneira de entender todos os livros como uma espécie de autoajuda, como se fossem escritos com o único propósito de fazer o leitor refletir sobre sua vida e modificá-la. Mas a verdade é que Schnitzler acaba nos mostrando um painel das mudanças nas relações entre os sexos e na sociedade de modo geral. Suas personagens femininas são fortes, decididas e inteligentes. Os homens, ao contrário, tentam se manter através da autoridade da tradição, mas sempre se enganam. Até mesmo aqui, onde Albertine, a mulher de Fridolin, quase não aparece, é uma personagem que está segura e confiante. Eu não ousaria afirmar que Schnitzler era um feminista, mas que estava atento às mudanças da sociedade e que as reproduzia em seus livros.
A cena final, onde Albertine atenua os efeitos da aventura de Fridolin, mostra perfeitamente o quanto esse homem se desgastou. Enquanto a mulher pode agora desejar, ser ativa e inteligente também, além de manter seu carinho (o que era sua única característica na visão de Fridolin). O homem está inseguro, frágil, curvado, chora arrependido e deseja apenas o conforto dos braços da mulher para livra-lo de tudo que passou e restituir seu lugar de afeto.