Luigi.Schinzari 12/11/2020
Sobre Passagem para a Índia, de E.M. Forster:
Não faz parte da tradição educacional brasileira estudar tão a fundo a história indiana. Para a massa, aliás, o país vai pouco além do tema das castas, a mixórdia de religiões e crenças que existe lá e o suntuoso tamanho da população, atualmente com seu 1,3 bilhão de pessoas. Mesmo não sendo um relato histórico, Passagem para a Índia (A Passage to India/1924), romance do autor inglês Edward Morgan Forster (1879-1970), é, além de suas qualidades literárias, um tratado sobre uma parte fulcral da trajetória do milenar país asiático -- sua colonização britânica --, e transporta às páginas os conflitos étnicos entre europeus e indianos, entre as crenças destes e as muitas existentes dentro da própria Índia.
O foco narrativo paira sobre um núcleo misto de personagens e o decorrer de suas relações: Cyril Fielding, professor inglês que vive na Índia há alguns anos e, diferentemente de boa parte de seus compatriotas, é muito receptivo aos povos indianos; Dr.Aziz, um médico muçulmano que se encontra em um entrave jurídico por conta de um mal-entendido da parte da jovem inglesa Adela Quested, moça que foi a Índia junto a Sra. Moore com a intenção de casar com seu filho, Ronny Heaslop e muito curiosa pelo país e sua sociedade, que o acusa, em certa parte da trama, de tê-la abusado enquanto aquele servia como guia pelas grutas de Marabar (local fictício que retrata fisicamente o choque entre as culturas britânica e indiana).
Traçada essa linha base, as relações entre essas personagens e uma gama derivada delas vai se desenvolvendo nos limiares das fronteiras demarcadas pelo homem como forma de impedir o convívio entre povos, classes e etnias diferentes.
E.M. Forster, tendo vivido por uma parte de sua vida na Índia por conta, inicialmente -- pois voltaria lá após a Primeira Guerra Mundial -- de um emprego como preceptor de um jovem que lá vivia, experenciou a tensão e o clima que ali havia, vivencia essa que está espalhada por cada página de sua obra. O autor tem a leveza de descrever as paisagens indianas com uma maestria encontrada em autores como Turguêniev e Dickens, narrando por várias passagens as cores, os sabores, o clima febril e as belezas naturais indianas; alia a sua bela visão sobre as paisagens as duras críticas feitas, geralmente guiadas mais pelos diálogos do que pela própria narração, a frieza e impessoalidade das relações entre ingleses e indianos, com as sutilezas das conversas gerando reações crescentes que podem ou não explodir em uma evasão emocional e verborrágica.
Há, para Forster, barreiras que vão além da física, e, mesmo perpetuando isso, as próprias personagens têm conhecimento desse fato e dos limites que suas relações poderão alcançar. É interessante notarmos que as castas indianas, característica amplamente reconhecida de parte de sua cultura, é nada relevante para essa demarcação interpessoal: as divisões estão entre hinduístas e maometanos como Aziz; entre ingleses como Fielding, que querem ultrapassar essas fronteiras, e Ronny Heaslop, que firma seus pés em estigmatizar o povo indiano como verdadeiros selvagens descontrolados; entre cristãos e islâmicos; e por aí se segue os confrontos que impedem, futilmente, como acredita Forster, do convívio -- e não apenas a tolerância -- entre esses polos.
Outro tema abordado por Forster é a injustiça imediata para com os indianos por conta de uma elite britânica que vive no país asiático, retratada na prisão e esforço tremendo por parte de Ronny e seus convivas em condenarem o Dr. Aziz pelo possível abuso da Srta. Quested, relatado por ela sem muita convicção e com provas rasas, causando uma rixa que assume tons revolucionários pelas ruas de Chandrapur (cidade em que a maior parte da história se passa) e demonstram o caráter arbitrário dessa porção inglesa cega em seus preconceitos e o calor caótico que tal acusação vai assumindo pela tensão entre as relações íntimas das personagens e pelo falatório popular. É quando culmina a tensão das fronteiras e o retrato em que elas mais se excitam e fortificam, restando apenas a histeria coletiva por ambas as partes e a razão fugindo de suas mãos em prol do radicalismo que o momento favorece -- trace você, leitor, o paralelo que quiser com situações midiáticas recentes.
Em meio aos entraves raciais e sociais, Forster nos apresenta uma leitura poderosa em sua mensagem e bela em sua escrita, com um pano de fundo enriquecedor por mostrar, com cuidado e muita pesquisa por parte do autor, as minúcias de cultura e dos povos indianos. Não à toa, Otto Maira Carpeux (1900-1978), um dos maiores críticos literários de nosso Brasil, citou Passagem para a Índia como: o maior livro, o mais verdadeiro que se escreveu sobre a questão indiana. É romance universal ao expressar o macro, as relações humanas, em um microcosmo, a situação da Índia britânica; é refinado em sua escrita ao saber expressar as críticas sem jamais cair em grosserias banais, requerendo do leitor os olhos e a sensibilidade para captar o que quer passar, como uma troca por sua escrita elaborada e muito embasada. Passagem para a Índia, por fim, é elegante ao juntar as qualidades literárias ao tom cético e questionador, com observações filosóficas e jamais pragmáticas; não irá saciar a ânsia por resoluções nos conflitos culturais e sociais entre nações e povos, mas com certeza expor-lá-alas de uma forma magistral em uma obra-prima da literatura ocidental.