Lucas.Ribeiro 25/03/2017minha estanteMeu anjo, a questão do racismo no "Sitio do picapau amarelo" talvez seja uma das mais incômodas e complexas da nossa literatura. E, quase sem dúvida, é a mais complexa de nossa literatura infantil. Se pedissem minha opinião eu afirmaria sem medo que estes textos tem sim, racismo. Trechos enormes com demonstrações explicitas de preconceito.
Há pessoas que tentam defender Lobato alegando que as redações do autor refletem o pensamento de determinado tempo e espaço (algo que você mesmo fez, demonstrando muita empatia e humildade). Argumento válido. Mas sobre isto, deve-se ter em conta que existem muitos outros escritores que viveram na mesma época e não produziram textos com o mesmo defeito. Ademais, compreender as possíveis razões da coisa não a tornará menos delicada, não livrará as crianças de suas consequências. Em meu modesto ponto de vista e em resposta à sua pergunta, eu diria que este é um aspecto de Lobato que, decididamente, caducou. Envelheceu.
E por que, então, este autor segue como uma espécie de símbolo da literatura infantil nacional? Por que sua obra segue adaptada sempre para Tv? Seus livros, por que continuam sendo recomendados para escolas e circulando pelas mesmas? Acho que isto se deve à complexidade do quadro geral.
Acompanhe comigo, por favor: quando Lobato principiou a escrever, quase não havia literatura infantil em nosso país. Os poucos livros que tínhamos, grosso modo, eram, ou adaptações de clássicos europeus, ou obras escritas em Português rebuscado e arcaico, destinados quase que exclusivamente à educação, repletos de um moralismo artificial que resultava n'uma prosa sem vida. O forte vínculo com outros continentes implicava ainda em quase inexistência de valorização do ambiente e cultura brasileiros. E como tampouco tínhamos impressores de grande porte e a maioria das obras brasileiras eram editadas em Portugal, mesmo tais livros chegavam a pouquíssimos leitores.
Lobato fundou uma editora que, graças ao trabalho árduo e criatividade dele, transformou os livros (de todo gênero) em produtos baratos e acessíveis aos habitantes de nossas terras. A partir daí, pode criar seus próprios textos. Levou às crianças uma linguagem viva, rica e inteiramente familiar, que abriu mão das construções dificeis, elaboradas e complexas, inacessíveis à faixa etária. Em seus enredos, tanto "abrasileirou" contos de fadas e fábulas europeias, vestindo-as à nacional, como, em muitos momentos, valorizou a cultura e o folclore de nosso país. Levou aos leitores faz-de-conta e fantasia de melhor qualidade, sempre valorizando a imaginação. Ademais, nunca deixou de lado a preocupação com o conhecimento geral dos leitores: levou aos pequenos assuntos grandes e sérios, que no Brasil de então destinavam-se exclusivamente aos adultos (posicionamento científico, pensamento critico, guerras e fome), e fez com que seus personagens aprendessem acerca dos mais variados temas, ora pondo-os em contato direto com o brilhantismo da civilização grega, fazendo-os revisitar clássicos de literatura adulta ("Dom Quixote e "Mil e uma noites", por exemplo), ouvindo ou oferecendo serões acerca de temas importantes (História, Geografia, Física, Astronomia, Biologia, Gramática, Aritmética). Por tudo isto, seu sítio já foi chamado por Marisa Lajolo, a mais importante estudiosa de literatura infantil brasileira de "projeto pedagógico sob medida para nosso país". E inúmeros e inúmeros grandes e premiados escritores nacionais para a infância dizem tê-lo lido quando pequenos e ver nele uma espécie de pai a inspirá-los: o cara realmente fez muito por nossos leitores mirins.
O que fazer, então, diante do quadro? Eis a pergunta que professores e pedagogos se fazem há décadas. O que fazer diante de uma obra com visíveis virtudes, mas que possui o defeito que apontamos? Pergunta difícil.
Mas a verdade, minha cara, é que, mesmo se nos detivermos na questão do racismo em específico, teremos dois lados a considerar. Emilia é racista? Ouso opinar que sim e muito, defeito que é sempre necessário ter em vista. Entretanto, como dizia um dos meus mais brilhantes professores da faculdade, tia Nastácia é a "alma" do sitio. E dá pra perceber. Foi ela a responsável por fazer o Visconde por exemplo. Era a encarregada de "consertar" o sábio de milho nas inúmeras ocasiões em que ele levava a breca. Ah, sim, ela fez a Emília também. E sempre que a boneca se via diante de uma grave dificuldade, era à bondosa cozinheira que recorria. Ademais, a boneca de pano, que as vezes a tratava tão mal, era também a que mais a amava. Sobre ela, escreveu em suas memórias: "Ciência e mais coisas dos livros, isto ela ignora completamente. (...) mas para mil e uma coisas práticas da vida, é uma verdadeira sábia. Nós brigamos muito e eu tenho lhe dito muitos desaforos. Só que não é de coração. No fundo no fundo, gosto mais dela que de seus afamados bolinhos".
Opino que, utilizando-se de inteligência, sabedoria, criatividade e tendo à disposição a ajuda necessária, talvez seja possível aos educadores fazer com que nossas crianças tenham contato com os méritos do sitio sem ser prejudicadas por seu demérito. Talvez...