MatheusPetris 04/12/2023
O livro mais conhecido de Tezza, O Filho Eterno, é o mais atípico de sua poética. O romancista defende que, quanto mais o autor se afastar subjetivamente de sua produção literária, melhor será sua literatura; se faz necessário dialogar com outras vozes. No geral, ele sempre evitou se colocar subjetivamente nos livros, todavia, O Filho Eterno faz a direção inversa, pois se relata autobiográficamente. No romance, o protagonista, um escritor frustrado que se considera um fracasso, que “tem dificuldade de preencher o espaço da profissão” (TEZZA, 2010, p. 11) em fichas simples, que é sustentado pela mulher há anos, se vê atônito diante da notícia que será pai. Após o nascimento do filho, desconfia-se que o mesmo possui a Síndrome de Down, antes chamada pejorativamente de mongolismo. O pai, desesperado, nutre esperanças que sabem vãs de que o diagnóstico esteja errado; obviamente, não estava. Felipe, o filho, é o nome do filho de Cristovão Tezza, e o escritor é o próprio em um passado um tanto distante. Embora seja uma relativa pessoal, biográfica, “não tem pretensão de ser a verdade” (ALMEIDA, 2009, p. 274). Isso posto, podemos pensar, inclusive, nas epígrafes que abrem o livro. A epígrafe de Bernhard atesta para a impossibilidade da linguagem alcançar a verdade, além de ser como uma chave para ler o livro na esteira autoficcional, isto é, o próprio romance é o afastamento da verdade. Assim, nos direcionamos à hipótese deste breve ensaio: a realidade é ficcionalizada por meio do tempo narrativo.
Apesar de uma profunda distância (temporal, formal e estilística) que separa Gustave Flaubert de Cristóvão Tezza, é possível tecer considerações aproximativas entre os autores. Flaubert (2005, p. 93) que dizia que “tudo se deve fazer a frio, calculadamente”, defendia a tese de que só deve se escrever sobre algo pensado, vivido, sentido, quando isso estiver distante, ou seja, só deve se escrever sobre o amor por alguém quando não estiver mais amando. Mas de que forma Tezza faz isso? Ao escolher um narrador onisciente em 3º pessoa, o autor veste uma “máscara ficcional” (RÜCKERT, 2016, p.164), é como se possibilitasse ao autor se auto ficcionalizar, falar de questões que até então estavam omissas. Entretanto, no bojo do romance, às vozes se confundem, autor, narrador e protagonista servem à ficção e não à verdade. Em determinado momento do romance, o narrador afirma que a Síndrome de Down nunca teve espaço em sua literatura, era impossível domesticá-la “numa representação literária” (TEZZA, 2010, p. 26). Porém, quando o narrador afirma essa impossibilidade, ele se refere a um passado daquele presente do escritor enquanto personagem, essa voz que ecoa (e se multiplica), é uma voz onisciente que faz justamente o inverso, transforma uma vivência em objeto literário. Quando Tezza fez isso? Quando já havia superado essa situação, o que revelou em entrevista: já não se tratava de questões emocionais, os problemas pessoais estavam resolvidos, agora se tratava de tornar tudo isso em literatura. Voltemos ao Flaubert para concluir esse primeiro raciocínio. Em uma carta a Louise Colet, poeta francesa, uma de suas paixões, Flaubert escreve que iria a um enterro da esposa de um velho amigo de seu pai. Sabendo disso, se prepara para “aproveitar tudo”, o que significa que deseja extrair desse doloroso evento, matéria prima para Madame Bovary… Para alguns isso pode soar maléfico, mas ele discorda, tendo inclusive diversos materiais angustiantes sobre si próprio. É ele quem diz na mesma carta: “Eu mesmo me dissequei ao vivo em momentos pouco alegres” (FLAUBERT, 2005, p. 109). Tanto para Tezza quanto para Flaubert, é como se fosse possível exprimir um evento, um acontecimento, apenas quanto menos senti-lo.
Quando o narrador fala que, “em nenhum momento, ao longo de mais de vinte anos, a síndrome de Down entrará em seu texto. Esse é um problema seu [do escritor-personagem], ele repete, não dos outros, e você terá que resolvê-lo sozinho” (TEZZA, 2010, p. 63), é como se tivesse atestando para o mencionado acima. Se o personagem-escritor decidisse por escrever um livro sobre a paternidade, era como se tivesse tentando resolver a questão pela via da literatura, utilizando ela como um meio e não como um fim em si mesma, o que seria uma contradição com a visão literária do personagem. Essa relação entre ficção e realidade parece estar imbricada num artifício temporal da construção narrativa. Sendo um narrador onisciente, esse narrador em terceira pessoa está localizado no futuro do personagem escritor. Entretanto, muitas vezes, a voz do presente do escritor-personagem parece ultrapassar a onisciência. O narrador, apesar de estar falando do futuro sobre acontecimentos passados, em diversos momentos, intercala diferentes tempos verbais. Fala quase sempre no indicativo alternando entre o Pretérito Perfeito e o próprio Presente, como se tudo se confundisse: "O filho finalmente subiu no banco do lado do motorista" (TEZZA, 2010, p. 133), era a comemoração de um avanço milimétrico, mas que para o garoto era muito. Logo em seguida, reflete sobre sua própria vida, agora no presente: "Sente cansaço, mas ainda tem energia de sobra aos 30 anos — é preciso decidir o que fazer da vida e se sente dolorosamente incapaz de sobrevivência (TEZZA, 2010, 133). Se uma das características da síndrome de Down é a impossibilidade de abstração do tempo, se Felipe vive um eterno presente, essa ferramenta narratológica de construção do texto não se relaciona exatamente com isso?
A relação entre pai e filho, ficção e realidade, não é apenas formal, mas conteudística. A outra epígrafe também nos conduz a essa reflexão. O narrador afirma que o "filho é a imagem mais próxima da ideia de destino, daquilo de que você não escapa", e Kierkegaard que o filho "é como um espelho no qual o pai se vê", não é exatamente o que ocorre com o personagem-escritor do romance? Marina Barbosa de Almeida (2009, p. 276) chamou atenção para isso: "O treinamento neurológico nos primeiros anos de vida do filho é contrastado com o treinamento do pai em relação às tentativas de publicar seus livros e as recusas das editoras". Nas partes finais do romance, o personagem que chegou a desejar a morte do filho, que parecia comemorar com uma baixa expectativa de vida, parece, enfim, amadurecer e compreender o enorme amor que sente pelo filho. Mas não nos enganemos, não é como se o romance tivesse uma linearidade narrativa, como se fosse uma resolução geral de tudo, como se fosse um simples final feliz, ainda — e a cena final revela isso — há muitos progressos que o pai deseja que Felipe alcance. Quando começa a entender o calendário por meio do futebol e eles criam um ritual em torno do clube do coração deles, é como um abraço entre pai e filho, uma aceitação. O personagem-escritor tão refém da linguagem, que incrédulo em como o filho não desenvolverá a nossa maior capacidade cognitiva, o que nos faz diferente dos animais, que nos permite estratificar a vida de maneira complexa, parece compreender que Felipe pode ser sujeito do modo dele. E mesmo em um eterno presente. Se Maurice Merleau-Ponty nos dizia que nossa existência não está no tempo, mas é o próprio tempo, ele também está falando que “o tempo — passado, presente, futuro — é, dessa forma, o próprio meio de existência como sujeito” (MATTHEWS, 2010, p. 128). Concluímos, então, que a passagem da realidade para a ficção, para a constituição de um objeto ficcional, não constitui uma resolução da vida real, mas apenas uma forma de transformá-la em literatura, produzir efeitos com ela. E não como domesticação, mas como superação, como afastamento. Um filho é eterno e o tempo também.