Diego Lunkes 05/03/2019
Um narrador participa de um clube de luta clandestino para aliviar o estresse e a insônia; um sobrevivente de um culto religioso suicida se torna um ícone da cultura mainstream; uma modelo rouba drogas de mansões à venda após ter seu rosto misteriosamente desfigurado.
A vida pode ser mais estranha do que a ficção. Ao menos é o que parece pensar o escritor Chuck Palahniuk, cujas obras se concentram em situações bizarras, para dizer o mínimo. Aliás, o autor já declarou que as únicas coisas sobre as quais vale a pena escrever são aquelas que o perturbam. Mas não se engane: as peculiaridades de suas histórias servem não somente para chocar o leitor, mas também para discutir assuntos que passariam batidos se abordados de maneiras convencionais. É claro que as ideias de Palahniuk causam estranhamento em alguns leitores. Seu conto "Tripas", por exemplo, foi responsável pelo desmaio de 73 pessoas… até a última contagem. Por isso, para um leitor não iniciado em sua bibliografia, uma boa recomendação de leitura seja talvez o romance "Condena". Isso porque o livro pega emprestado a trama e os personagens de duas histórias muito conhecidas e muito distintas entre si, com as quais o leitor possivelmente está familiarizado: "Clube dos Cinco" e "Divina Comédia".
Loucura demais para você até aqui? Então, caro leitor, sugiro que abandone este texto, pois nossa narradora-protagonista, Madison, não tem escrúpulos para descrever suas experiências ao ser mandada para o inferno após morrer supostamente por overdose de maconha. Chuck Palahniuk entende o potencial que as palavras possuem para evocar imagens na mente do leitor e utiliza isso a seu favor. Construindo cenas amplamente descritivas, o escritor emprega palavras associadas aos sentidos do corpo, estrategicamente combinadas para despertar referências pessoais no banco de memórias do leitor. Também estabelece comparações para tornar mais reais experiências vagas quando associadas com experiências comumente compartilhadas. Veja como as cenas a seguir dão conta de causar sensações auditivas, olfativas e táteis utilizando somente palavras para isso.
"Mesmo com o fedor de merda e a fumaça de enxofre, é possível sentir o cheiro do perfume de R$ 1,99 dela, uma mistura de frutas tipo chiclete ou refresco de uva de pacotinho."
"Da mesma maneira que você desmembraria um caranguejo em uma panela com água fervente, a figura chifruda agarra uma das pernas do jogador de futebol e a torce para um lado e para outro, a articulação do quadril estalando e os tendões se partindo, até a perna se soltar do torso."
O domínio que Chuck possui sobre a linguagem não se limita ao aspecto visual, estendendo-se também no estilo narrativo. Assim como na maioria das suas histórias, "Condenada" possui uma narrativa não linear, intercalando capítulos que se passam entre a vida de Madison na Terra e sua subsequente pena no inferno. Este recurso serve para conduzir a história de forma mais dinâmica e interessante, além de reter informações essenciais que serão reveladas no clímax da história, criando uma reviravolta no enredo (plot twist). Outra técnica literária recorrente é a repetição proposital de palavras ou frases que recebem um significado no seu primeiro uso na história e posteriormente evocam este mesmo significado ao serem utilizadas repetidamente, funcionando como uma espécie de refrão.
"Sim, conheço a palavra propagar. Estou morta, não com danos cerebrais."
"Sim, conheço a palavra tenacidade. Tenho treze anos e sou desiludida e um pouco solitária, mas não limitada."
E se Palahniuk já possui um talento para criar situações absurdas usando apenas elementos mundanos, o cenário fantasioso do inferno confere liberdade para que o autor arquitete seus delírios mais extravagantes, onde o limite é a sua criatividade (que por sinal parece não ter limites). Iniciando a jornada no submundo com um passeio num luxuoso carro Lincoln Town Car, conduzido por um motorista particular, Madson é levada até sua cela reservada no inferno. Sua pena é compartilhada com outros adolescentes, cada qual uma figura estereotipada, referenciando "Clube dos Cinco": uma líder de torcida, um jogador de futebol americano, um nerd e um punk. Madison conduz o grupo e o leitor em um tour através do inferno, situando a geografia do Mar de Insetos, das Grandes Planícies de Cascos de Vidro e do Grande Oceano de Esperma Desperdiçado. Nossa protagonista é esperta e logo aprende sobre o funcionamento do submundo, nos instruindo a respeito da moeda de troca (doces), dos métodos de tortura (trabalhar no telemarketing) e dos códigos de vestimenta (morrer utilizando calçados de boa qualidade para que não derretam no calor). Ao longo da penitência infernal, o autor compõe cenas que desafiam a imaginação, convidando o leitor a se empenhar mais ativamente na história. Seja brincando com escalas de tamanho quando um personagem enfia uma cabeça humana decepada na genitália de um demônio colossal. Ou seja propondo que se imagine um corpo humano se reconstituindo após ter sido devorado por uma criatura.
Mas é claro que Chuck Palahniuk não perderia a oportunidade de alfinetar o mundo humano. Aliás, a comparação do inferno com a Terra é um contraste muito propício para que o autor exponha sua visão cínica da humanidade. Em capítulos que fazem uma regressão na linha temporal da narrativa, Madison nos apresenta sua vida passada. Filha de um bilionário e de uma atriz de cinema narcisista, a garota é criada sob padrões onde tudo é permitido: desde utilizar remédios entorpecentes até receber uma duvidosa educação sexual extremamente detalhada. E se por um lado Madison, por ser rica, possui de tudo em questões materiais, em questões afetivas não poderia ser mais pobre na medida em que seus pais a negligenciam completamente. Assim como em seus livros anteriores, Chuck novamente critica a obsessão por bens materiais, criando situações absurdas (justamente por parecerem prováveis de acontecer) onde a mãe de Madison constantemente monitora suas casas ao redor do mundo através de um sistema de câmeras. Ou ainda, de forma menos sutil, o autor se refere a casos famosos do mundo real quando a mãe de Madison adota uma criança, convenientemente na época de lançamento do seu novo filme.
O conjunto destas experiências molda a visão da pequena Madison e a faz encarar o mundo com um olhar clínico e comentários ácidos. Numa prosa irônica de defunta autora, digna dos narradores machadianos, Madison impulsiona a história, fazendo com que a voz narrativa seja tão interessante quanto os acontecimentos extravagantes do livro. Sua ironia já fica evidente no bordão que encabeça o início de cada capítulo ("E aí, Satã? Sou eu, Madison"). A garota também demonstra uma profunda habilidade em compreender as pessoas a sua volta, e as segundas intenções que regem seus comportamentos, seja com comentários diretos ou passivo-agressivos.
"É o tipo de gesto condescendente de quinta, como quando gente rica pergunta a gente pobre onde passa o verão. Para mim, cheira a um tipo de chauvinismo descarado e insensível de 'deixe-os comer uma fatia do nosso bolo'."
"Não, educadamente, deixei de lado Persuasão e convidei essas três vulgaretes para entrar e se sentar por uns momentos na minha austera, mas confortável cama de solteiro."
Analisando a carreira de Chuck Palahniuk, é muito bom perceber que após mais de duas décadas de atividade e de mais de duas dúzias de obras publicadas, o autor não se deixa cair na maldição de produzir mais do mesmo. Muitos escritores bons acomodam-se após obter sucesso e limitam-se a replicar de forma barata suas melhores histórias, seja por preguiça ou por inabilidade. É possível notar o empenho que Chuck dedica às histórias ao participar assiduamente de cursos de escrita criativa e buscar contar sua próxima história de uma maneira diferente das anteriores. Seus livros estimulam o leitor a se engajar com as histórias, seja propondo cenas imaginativas, seja redefinindo o significado de palavras e frases recorrentes, ou seja interpretando as ironias dos narradores, como um ouvinte extraindo prazer ao decifrar instantaneamente uma piada. E esse envolvimento faz com que o leitor revisite suas histórias enquanto aguarda ansiosamente pelo seu próximo livro.
site: https://barbaliterata.wordpress.com/2019/03/05/condenada/