spoiler visualizarRonaldo Thomé 03/11/2020
Flores Doentias
Delicioso! Mais um favorito da vida!
Você quer uma opção para ler no Halloween? Ou um livro sensível de poesias? Você quer ver belas histórias românticas em versos, ou encarar o lado sombrio do humano? Você prefere um texto técnico, cheio de rimas e vocabulário clássico, ou algo que mete o pé na porta e vai direto ao ponto?
Sem dúvidas, As Flores do Mal são um prato cheio para qualquer um que responda sim às perguntas acima - e muito mais. Nem parece que esse livro é de 1857, dado o teor de alguns poemas (o que rendeu um processo de censura contra Baudelaire que se arrastou por anos). Fã de Edgar Allan Poe e influenciado pelo Romantismo (embora com grande influência da poesia latina), Baudelaire inicia aqui uma fonte da qual beberiam o Realismo, o Simbolismo e muitos modernistas.
O fio condutor do livro é a decadência, o lado sombrio e soturno da humanidade: a violência, a obsessão amorosa, a sexualidade desenfreada aparecem lado a lado com o belo, o sintético, a luta inútil para vencer o tempo que tudo devora. A embriaguez, tanto literal como metafórica, também estão presentes com muita força.
Mas nada disso seria a mesma coisa sem dois elementos chave no livro.
O primeiro é a maneira como Baudelaire coloca um dualismo inédito em seu pensamento. Aqui, o Bem e o Mal nem sempre aparecem em luta, em antagonismo: o tédio, a agonia, o vício são colocados lado a lado como partes da vida, assim como a beleza, o amor, a juventude. É um elemento difícil de ser explicado, mas facilmente perceptível: o autor entende que a vida é impermanente e mutável, que lutamos contra o tempo, e que é da natureza humana lutar contra si própria, apenas para perceber que isso é impossível.
O segundo elemento é a forma avassaladora como Baudelaire introduziu isso na sua linguagem: como não há como fugir do tédio, da desilusão, da velhice, ele coloca em seus poemas cenas perturbadoras, em que nos sentimos mais do que desnorteados. Poemas como "Uma Carniça" e "Viagem a Citera", por exemplo, colocam você frente a frente com situações horríveis, mas que podem lhe despertar ternas lembranças de pessoas e momentos que ficaram para trás. Podem, porque com certeza não são muitas as pessoas que conseguiriam fazer isso ao encontrar um cadáver feminino de pernas abertas à sua frente, ou se imaginar apodrecendo após dias pendurado na própria forca...
E situações horríveis podem ser encontradas em todos esses poemas: esgotos, lixo, sujeira, ratos, cadáveres em putrefação - tudo isso aparece, e muito mais. O desejo sexual, por exemplo, escorre aos litros, assim como o vinho e seus efeitos (um exemplo é Lesbos).
Um aviso: Baudelaire tinha uma religiosidade toda própria, na qual Bem e Mal não necessariamente são opostos. Alguns dos poemas mais perturbadores do livro falam dessa relação. Se você for uma pessoa muito religiosa, pode vir a se sentir perturbado(a) com isso. Sendo mais explícito: Baudelaire fala muito sobre Satanás. Ele não era satanista ou coisa do tipo, e muitos dos seus poemas também falam do amor a Deus e Jesus Cristo, porém isso não faz dele um cristão. O poeta francês via tudo como algo profundo e transcendental, tendo grande influência do misticismo e paganismo. Isso faz com que ele fosse capaz de valorizar os os personagens citados acima, de ter reverência e até mesmo devoção (em alguns momentos) por eles, em outros, questioná-los.
E não se engane: ainda hoje ler "As Litanias" em voz alta tem um efeito assustador.
Em resumo, é um livro muito forte, que precisa ser lido com mente aberta, e com cuidado. Mas, para quem tem a facilidade de separar as coisas, é um trabalho excepcional. Digo sem medo: excelente opção de leitura para um Halloween e, sem medo, no meu top 5 deste ano!
Recomendado para: quem quer descobrir uma das fontes mais férteis da poesia na história. De Rimbaud a Drummond de Andrade, passando pelo Heavy Metal, Baudelaire e suas flores estão mais vivos do que nunca.
Nota: 10,0 de 10.
Dica: leia ouvindo isto - https://youtu.be/JHSMoYXqCqg