Oz 19/10/2017
O absurdo da normalidade ou a normalidade do absurdo
Imagine-se você como um piloto de um avião bombardeiro na II Guerra Mundial. Não haveria nada mais racional do que se preocupar com sua própria segurança em face dos perigos reais que o circundaria nessa situação. Agora, suponha que, por vontade própria, você queira voar em missões quase suicidas. Loucura, certo? Bem, se você demonstrasse ser um louco desse nível, certamente poderia alegar loucura e pedir para ser isolado no hospital do exército, evitando de ser convocado nas próximas missões aéreas. Contudo, se você efetuasse esse pedido, passaria automaticamente a deixar de ser louco e teria, obrigatoriamente, que continuar cumprindo seus voos. Em resumo: se você voasse, seria um louco e não precisaria fazer isso; mas se você não quisesse voar, mostraria que é uma pessoa com boa sanidade mental e seria obrigado a voar. Bem-vindo a Catch-22.
O grande paradoxo descrito acima é uma das cláusulas do Catch-22 (ou Ardil-22, na tradução), que nada mais é do que uma designação para as leis não escritas que empoderam as autoridades institucionais de revocarem os direitos do cidadão, simplesmente com o intuito de atender aos seus próprios caprichos. O livro de Joseph Heller é sobre isso: o absurdo. E não se deixe enganar por caminhos e associações fáceis, pois o absurdo abordado pelo autor não é apenas o da guerra, no qual estão inseridos os personagens do livro, mas sim o da condição humana e suas construções sociais.
A narrativa acompanha Yossarian e seus companheiros de um esquadrão de bombardeio localizado em uma ilha fictícia da Itália durante a II Guerra. O livro é recheado de personagens (algo que geralmente me incomoda, mas não nesse livro) caricatos que vão apresentando os comportamentos mais absurdos possíveis, sempre demonstrando uma terrível insensibilidade com o próximo ou uma falta de noção tão surreal que só resta ao leitor gargalhar do humor negro presente em cada página. Vai um exemplo: Milo, o responsável pelo abastecimento de comida e alimentação do soldados do esquadrão, desenvolve um sindicato imenso de fornecimento de tudo quanto é tipo de produtos. O esquema dele se torna tão grande, que ele passa a fazer negócio com todos os países envolvidos na guerra, inclusive com os próprios inimigos alemães. O lema dele é: se é bom para o mercado, é bom para o país. Em um dos maiores absurdos, Milo comanda um bombardeio aéreo a uma ponte dos alemães, ao mesmo tempo em que comanda as próprias baterias anti-aéreas alemãs! Assim, ele passa a lucrar dos dois lados do combate. Seu objetivo final é simplesmente privatizar a guerra, excluindo definitivamente qualquer influência dos governos. E pasmem: esse episódio não é o maior absurdo cometido por Milo ao longo do livro.
Outro exemplo de passagem hilária (e absurda): Major Major (sim, o nome do sujeito é Major!) é promovido a major em detrimento do Capitão Black, que esperava ser promovido a esse cargo. Em uma cruzada de vingança, Black passa a espalhar o rumor de que Major Major é comunista. Não contente com isso, ele institui uma espécie de juramento de lealdade que todos os soldados devem assinar nas situações mais esdrúxulas possíveis: quando os soldados vão pegar suas cartas, seus paraquedas ou mesmo quando vão comer. Black proíbe Major Major de assinar esses juramentos, de modo que Major não pode provar sua lealdade (!!!). Obviamente, essa vingança pessoal bizarra passa a descontentar os soldados, que começam a reclamar da burocracia cada vez maior dentro das atividades do esquadrão.
A partir dessa e outras inúmeras passagens, é quase automático que nós, leitores, façamos comparações com o nosso mundo real: quão atual são esses e outros absurdos abordados por Heller? Pior ainda, será mesmo que temos o direito de nomeá-los desse modo? Afinal, se eles passam a ser acontecimentos corriqueiros e usuais em nossa sociedade, dificilmente poderíamos dar a eles um status de extraordinário. Quantas guerras são "inventadas" simplesmente para fomentar interesses privados, como o mercado de armas ou a indústria do petróleo? Quantas são as leis ou regras inúteis que só servem para elevar o nível de burocracia em diversas instituições públicas e criar cargos dispensáveis? No dia-a-dia, quão condescendentes e susceptíveis nós somos em relação aos diversos acontecimentos, corriqueiros ou não, que não deveriam ser aceitos sem, ao menos, um questionamento de nossa parte? Acho que o gabarito para essas três questões é: muitas, muitas e muito. No final das contas, estamos sempre em meio a um paradoxo no qual a sanidade mais cômoda é se acostumar com a loucura dos nossos tempos, até que isso passe a ser visto como normal. Catch-22 é sobre isso e, embora a aridez que circunda o tema seja flagrante, ao menos o humor ácido da leitura alivia a tristeza de reconhecermos nossa frágil condição como seres socialmente acomodados. E gargalhamos disso.
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