Leonardo 04/07/2013
De Gaiman eu li, há bastante tempo, a série Sandman. Não lembro exatamente quais foram os arcos, mas lembro-me claramente de uma revista especial sobre Morte, irmã de Sandman, também um dos sete perpétuos. Como sempre acompanhei quadrinhos (e quando falo acompanhar refiro-me a acompanhar de longe mesmo, já que eu não tinha dinheiro para comprar), sempre via seu nome associado a grandes criações, reverenciado juntamente com outros monstros dos quadrinhos, como Alan Moore, Warren Ellis e Frank Miller, por exemplo.
Alguns anos se passaram – não sei quantos – e fui afastando-me paulatinamente dos quadrinhos e aproximando-me mais da literatura. Só então fui tomar conhecimento de que Neil Gaiman também escrevia. Mas, imaginava eu, ele deveria produzir literatura “barata”, voltada para nerds leitores de quadrinhos. Um determinado dia, os dois volumes de Coisas Frágeis estavam por R$ 9,90 cada um no site da Saraiva. É a minha oportunidade de saber como ele escreve, pensei. Por esse preço, vale a pena o risco. Comprei e encantei-me com seus contos. Alguns mais simples, outros mais elaborados, mas sempre muita, muita imaginação. Fui ficando cada vez mais curioso para ler Deuses Americanos, considerada sua grande obra. Quando finalmente li, caramba... que imaginação impressionante, que prosa segura, que contador de histórias o Sr. Gaiman é (mais sobre Deuses Americanos aqui)!
Eis que agora chega às livrarias seu novo livro, o que, naturalmente, chamou a minha atenção. Não perdi tempo e pedi logo o meu exemplar à Editora Intrínseca. Cheguei de viagem ontem, depois de dez dias ausente, e cá estava a caixinha de papelão com o adesivo da Intrínseca. Ontem mesmo, por volta de meio dia, comecei a ler. Antes das cinco havia terminado, com uma breve pausa para o almoço. Acredito que isso diz muito.
O oceano no fim do caminho é um livro curto, com 202 páginas. Conta a história de um homem com cerca de cinquenta anos que retorna à sua cidade natal depois de muito tempo para um funeral. Ele resolve visitar a casa onde passou parte da sua infância, e lembranças há muito escondidas vêm à tona. Após o pequeno prólogo, o restante do livro dedica-se ao que viveu este homem quando tinha sete anos de idade.
Ele era um menino introspectivo e apaixonado pelos livros, e morava numa grande casa no campo, com seus pais e sua irmã. Já no primeiro capítulo, Gaiman conquista os bookworms como eu apenas descrevendo o bolo de aniversário do menino:
“Havia uma mesa arrumada com gelatinas e pavês, um chapéu de festa ao lado de cada prato e, no meio, um bolo com sete velas. Em cima dele, um livro desenhado com glacê. Minha mãe, que organizara a festa, contou que a moça da confeitaria confessara que eles nunca haviam colocado um livro num bolo de aniversário, e que faziam, para a maioria dos meninos, bolas de futebol ou naves espaciais. Eu fui o primeiro livro dela.”
Seus pais enfrentavam dificuldades financeiras e passaram a alugar um dos quartos da casa para ajudar nas despesas. Um homem que havia alugado o quarto comete suicídio dentro do carro de seu pai, e essa tragédia dispara uma série de eventos fantásticos. Ao lado de Lettie Hempstock, uma menina de onze anos que tem onze anos há muito tempo, o menino vai viver aventuras surreais. Ela vive na fazenda das Hempstock, que fica próximo à casa dele, junto com a sua avó Hempstock e sua mãe Hempstock. Na propriedade delas há um lago, que Lettie insistem em chamar de oceano. E é este o oceano no fim do caminho. Há bem mais que um oceano naquele lugar, e o garoto vai descobrir isso muito rapidamente.
Não gosto de escrever sobre um livro contando um enredo, e num caso desses, contar mais do que já fiz é estragar o encanto de mergulhar num mundo repleto de seres sobrenaturais e eventos inacreditáveis. Como mencionei no que escrevi sobre Deuses Americanos, a imaginação de Gaiman é impressionante, e dizer isso expressa muito pouco do que sinto quando o leio. Para ficar em um pequeno exemplo, cito uma “mágica” ou “encantamento” que envolve um pano, uma agulha, uma linha e uma tesoura. Genial.
Acredito que O oceano no fim do caminho seja ainda mais apreciado – ou seja apreciado mais facilmente – por quem tenha lido Deuses Americanos e outros livros que exploram a “mitologia” criada por Gaiman, como Os filhos de Anansi ou alguns contos de Coisas Frágeis. Em Deuses Americanos há algumas pequenas histórias paralelas que deixam entrever como determinados deuses surgiram ou decaíram, e fiquei com a sensação de que O oceano no fim do caminho poderia muito bem ser uma dessas histórias, um conto grande dentro do universo de Deuses Americanos.
Com isso não quero dizer, de forma alguma, que o livro não sobreviva por si só. Trata-se de uma história de descoberta, ou melhor, de redescoberta, já que o homem resolve revisitar seu passado e lembrar-se daquele menino que talvez tenha visto coisas demais cedo demais.
Também é um livro que louva justamente a imaginação, a criação de histórias, e isso se reflete num momento crucial na vida do pequeno menino, em que ele reflete:
“Desde pequeno eu sempre pegava várias ideias emprestadas dos livros. Eles me ensinaram quase tudo o que eu sabia sobre o que as pessoas faziam, sobre como me comportar. Eram meus professores e meus conselheiros. Nos livros, os garotos subiam em árvores, então eu subia em árvores, às vezes muito altas, sempre com medo de cair. Nos livros, as pessoas subiam e desciam pelos canos de escoamento da água da chuva para entrar e sair das casas, então eu também subia e descia por eles.”
Antes de encerrar, duas observações sobre o livro em si, uma positiva, outra negativa:
Gostei muito da edição. A capa é belíssima, e há uma ilustração em preto e branco que vem logo quando você abre o livro, uma réplica da capa. Não sei tecnicamente o nome, mas aí está:
Por outro lado, notei, durante a leitura, três erros de revisão, como, por exemplo:
“Não vamos falar com ele até que esteja autorizado a ser juntar de novo à família” (pág. 90).
“Lá dentro coisa tinha começado a se desenroscar lentamente” (pág. 120).
Pode parecer pouco, mas meu padrão de tolerância de erros num livro é zero. Um erro já é uma falha grave. Isso porque lançar um livro não é brincadeira, não se trata de um investimento pequeno. No caso de um livro como esse, houve quem traduzisse, revisasse, diagramasse e sei lá mais quantos passos até que o livro tivesse sua versão final e fosse impresso e enviado às lojas. Erros como esse demonstram que o esmero aplicado na produção da capa, na impressão e no projeto gráfico como um todo não foi o mesmo da fase de revisão. Ressalto, contudo, que sou extremamente chato em relação a isso. Há quem leia e nem note. Há quem leia e note, mas não se importe.
Claro que isso não tira em nada o brilho de O oceano no fim do caminho. Trata-se de um livro delicioso, literatura que diverte, entretenimento de alto nível. Se você gosta de dar asas à imaginação, é um prato cheio. Pena que, apesar de cheio, é um prato pequeno.
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