Michelly 09/01/2024Entre o supérfluo e a complexidade em A Filha do CapitãoEstamos nos referindo a uma obra que surge no início do século XIX, juntamente com outra criação cujos comentários são abundantes ao longo de toda a edição, intitulada 'História de Pugatchóv'. Imagina-se que a diferença entre ambas seja a própria natureza da ficção, uma vez que em 'A Filha do Capitão', por se tratar de uma narrativa ficcional, não há um relato biográfico factual como na 'História de Pugatchóv'. Estamos conscientes de que, por fazer parte de uma pesquisa histórica conduzida por Puchkin, há reflexos históricos, apesar de o texto ser ficcional.
Creio que estamos conscientes do caráter revolucionário de Puchkin ao proporcionar uma visão das revoltas camponesas russas, refletindo a conjuntura da época marcada por um processo de silenciamento e até apagamento da história russa. No entanto, com este autor, não estamos apenas imersos na vida de um sujeito específico, como no caso de Pugatchóv, mas também dentro de um cenário assolado por aldeias destruídas, cujos habitantes são constantemente vitimados por diversas adversidades, como sucessões de poder ou fome.
A história gira em torno do jovem Griov, um nobre russo, e Maria Ivanovna Mironova, a filha do capitão Savelich Mironov. Durante a revolta de Pugatchov, Griov é enviado pelo czar para servir como oficial militar em uma fortaleza remota. Lá, ele se apaixona por Maria, mas a trama se complica, dando origem ao clímax, momento em que Griov parte em busca da amada, ora se aproximando, ora se rivalizando com as posturas morais de Pugatchov. Neste ponto específico, estamos imersos na conjuntura histórica, política e social da Rússia do século XVIII. Neste caso, o cenário permite vislumbrar uma Rússia composta por senhores de terra, mesmo que já haja um processo de transformação industrial em andamento.
O primeiro comentário a ser feito, mas também por curiosidade, é a forte influência que Byron exerce na construção literária de Púchkin. Estamos, assim, discutindo o processo de formação do maior poeta russo, cujas raízes encontram-se na literatura inglesa.
Disto parte o nascimento de um tipo específico de personagem, ao qual Otto Maria Carpeaux se refere como 'personagem do supérfluo' na introdução. Trata-se de uma psicologia novelística que constitui quase toda a estrutura da literatura russa do século XIX. Na minha interpretação, consigo enxergar no personagem Griov de “A Filha do Capitão” um personagem voltado ao supérfluo. A partir desse insight proporcionado por Carpeaux, torna-se difícil adentrar no livro sem considerar essa perspectiva inicial.
Diante desse contexto, também é possível observar uma determinada categoria de personagens que exemplificam bem o que era a Rússia no século XIX. Entre eles, destacam-se os nobres, os servos, e também os tutores, cada um pertencente a particularidades distintas, como hábitos tradicionais, atitudes e instabilidades de comportamento. Não é minha intenção detalhar cada personagem, mas é interessante notar que a característica de Griov, por exemplo, é ambivalente, oscilando entre um forte sentido de dever moral e decisões rebeldes, por vezes burlescas, e seu caráter superficial diante das agruras narradas.
Portanto, não à toa, Púchkin é atribuído ao mesmo nível de importância que Shakespeare e Dostoiévski. No famoso discurso proferido em sua homenagem em 1880, Dostoiévski afirma que Púchkin foi responsável por proporcionar aos seus conterrâneos uma nova consciência. Ao aprofundarmos as pesquisas que se debruçam sobre a literatura do autor, observamos que ele desempenhou um papel crucial ao abrir a possibilidade de a Rússia se integrar a uma civilização. A introdução da Rússia na literatura moderna por meio de Púchkin confere uma amplitude literária, possibilitando diversas novas formas de expressão literária, tanto na representação das crenças quanto nas falas simples do povo.