Henrique Fendrich 06/08/2013
Milton Hatoum à espreita
Milton Hatoum é um cronista tardio. Assim como Cristóvão Tezza, por exemplo, só passou a exercer o gênero depois de já ter alcançado muito sucesso com seus romances, gênero bem mais aceito pela literatura, e portanto digno do prestígio que o jornal busca no momento de escolher os seus colunistas. Mas seria realmente uma pena se o cronista não se manifestasse em Hatoum. Especialmente pelo momento atual do gênero no país, que vive do talento de Veríssimo mas também das extravagâncias performáticas de Carpinejar e da simplicidade sincera de Martha Medeiros, ambos lidos e vendidos especialmente por tratarem de sentimentos e relacionamentos. Pelo seu livro de estreia no gênero, “Um solitário à espreita”, já é possível citar Milton Hatoum como um dos melhores cronistas em atividade no país.
O curioso no estilo de Hatoum como cronista é a dificuldade em separar a ficção da realidade. Todas as crônicas são escritas em primeira pessoa, e algumas citam inclusive parentes do autor, mas nem por isso é possível garantir que aquilo que está sendo contado aconteceu de fato. Na contramão de grande parte dos cronistas, Hatoum enxerga o gênero de forma essencialmente literária, e portanto um terreno propício para a ficção. Nem por isso o autor deixa de tentar convencer o leitor, pois há verossimilhança em todos os textos. Ao mesmo tempo, também fica uma pontinha de dúvida naqueles textos em que o relato é verdadeiro.
Também curioso foi o fato de que Hatoum reescreveu todas as crônicas antes de publicá-las – possivelmente uma tentativa de driblar o efêmero. O autor já estava distanciado algum tempo do momento em que escreveu e, na maioria dos casos, mais tempo ainda daquilo que estava sendo narrado. E a memória, como em toda a sua obra abertamente ficcional, também é peça fundamental na crônica de Hatoum.
Histórias acontecem com tudo mundo, mas nem todos tiveram oportunidade de estar em tantos lugares quanto Hatoum, vivenciando culturas e particularidades inspiradoras para a sua prosa. Suas crônicas passam por Manaus, Brasília, São Paulo, Salvador, Paris, Barcelona, Buenos Aires, Berkeley/EUA, Iowa City/EUA, New Orleans, Toronto, Olinda, Recife, Belém, Lisboa, Boston, Caiena/Guiana Francesa, Porto Alegre, Turim, Dijon/França, Maringá, Cidade do México, e ainda outras menores, como Águas da Prata/SP e Alumínio/SP, além de falar com conhecimento de causa sobre São Luís e Santos.
Se as milhas do cronista impressionam, outro não é o efeito de sua bagagem literária, salpicada aqui e ali durante as suas crônicas, e sem sinais de pedantismo. Flaubert, Faulkner, García Márquez, Drummond, Marcel Schwob, Baudelaire, Stendhal, Joyce, Bandeira, Borges, R. L. Stevenson, Italo Svevo, Mário de Andrade, Nicolas Behr, Augusto Roa Bastos, Kafka, João Cabral de Melo Neto, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Eça de Queirós, Roberto Arlt, Guimarães Rosa, Joseph Conrad, Coelho Neto, José Lezama Lima, Nietzsche, Italo Calvino, Ernesto Ferrero, Appolinaire, Zola, Samuel Beckett, Hector Bianciotti, Jaime Dobles de Altamr, Nabokov e possivelmente outros aparecem em algum momento de suas 96 crônicas, fazendo links que estimulam a pesquisa de algum leitor bem disposto.
Também é digna de nota a melancolia de Hatoum, ultimamente bastante desvalorizada no gênero, mas que tem origem no próprio Machado e seu êxtase em Rubem Braga, o próprio sinônimo de crônica. É a visão de um mundo desencantado em que Hatoum, arquiteto de formação, percebe a feiúra e o mau gosto tomando conta de todos os espaços urbanos. O pessimismo toma conta também de sua visão política, ao mesmo tempo em que lhe proporciona momentos de profeta, como a crônica em que visualiza, com um ano de antecedência, a população nas ruas cobrando a dignidade roubada pelos gastos com a Copa do Mundo. Embora a justiça de sua indignação seja inquestionável na maioria parte dos casos, há aqui e ali algumas frases contundentes que resvalam no exagero. Apesar disso, em muitas vezes a crônica de Hatoum é um bom meio de se sentir vingado diante dos dissabores que enfrentamos.
Essa descrença de Hatoum também faz com que prefira as pessoas comuns, geralmente vítimas do mesmo sistema em que já não acredita e não sabe onde vai parar. Também é da própria crônica dar voz aos personagens triviais do cotidiano. Hatoum os observa, percebe a dureza da vida que levam, trava diálogos com eles (reais ou não) e de certa forma parece depositar nessas mesmas pessoas a esperança que ainda tem.
Muitas vezes, o cronista atrai o leitor para um determinada tema apenas com o objetivo de conduzi-lo até outro, característica tão própria do velho Braga. São bonitas também as crônicas que envolvem Manaus, um mundo que precisa ser descoberto. Nas crônicas que descreve aspectos da natureza tem-se inclusive a impressão de que hoje em dia apenas na Amazônia ainda é possível ser Rubem Braga.
É um grande livro de crônicas, enfim. Um cronista tardio, mas que conhece os macetes do gênero, sendo o principal deles justamente a espreita. E talvez também a solidão.
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