Antonio Luiz 15/03/2010
Sob o véu de Maya
"Fantasmas no cérebro" é apresentado por Oliver Sacks, que costuma tratar de problemas muito semelhantes. Porém, se Sacks é o Charles Dickens da neurologia, Vilayanur Ramachandran é o seu Conan Doyle.
Sacks comove-se com o drama pessoal de pacientes que preservam sua individualidade ao lutar com as mais estranhas condições neurológicas. Ramachandran, cientista nascido e educado na Índia, onde o eu sempre foi considerado mera ilusão, mostra como os distúrbios neurológicos rasgam o véu que encobre a perturbadora verdade sobre a individualidade das pessoas normais.
As pesquisas sobre os membros fantasmas tornaram seu nome conhecido na comunidade científica. Trata-se da sensação, comum entre amputados, de que o membro perdido ainda existe – e que às vezes é muito incômoda, pois o “fantasma” pode sentir pruridos e dores intratáveis.
Outra condição curiosa, freqüente entre pessoas que perderam parte do campo visual, é o surgimento de estranhas alucinações na área perdida, que nada têm a ver com psicose ou senilidade.
Em ambos os casos, o cérebro se esforça para preencher o mapa da realidade do seu corpo e da realidade à sua volta, mais ou menos como os cartógrafos da era dos descobrimentos preenchiam as partes ainda desconhecidas do globo terrestre com povos, terras e animais imaginários.
Ainda mais estranha é a síndrome de negação de certos pacientes de derrames graves, incapazes de admitir que estão totalmente paralisados do lado esquerdo, embora continuem sensatos sob outros aspectos. Se o médico os desafia a fazer algo com o braço prejudicado, ficam imóveis, mas insistem com veemência que estão fazendo o que lhes foi pedido – ou explicam por que não querem fazê-lo.
Não se trata só de uma recusa a enfrentar a realidade, mas também de uma condição neurológica. Pacientes paralisados do lado direito, pelo contrário, costumam ficar muito conscientes de sua condição e até a mostrar depressão e pessimismo excessivos.
Por um capricho da natureza, o lado esquerdo do cérebro controla o lado direito do corpo (e vice-versa). Esse lado, propõe Ramachandran, tem a tarefa de criar um sistema de crença, um modelo da realidade no qual se esforça por encaixar as novas experiências. Enquanto isso, o outro lado permanece atento às anomalias que não se encaixam no modelo.
Caricaturando um pouco, o hemisfério esquerdo é o general conservador aferrado ao status quo, que nega ou minimiza o que não se encaixa em sua visão de mundo. O contestador esquerdista é o hemisfério direito que, como advogado do diabo, chama a atenção para as falhas do modelo e força a busca de alternativas.
Nos casos de negação, a crítica do lado contestador é sufocada pelo derrame e o lado conservador pode desenvolver sua lógica, divagar sem limites sobre suas ilusões e ignorar os fatos que contrariam suas expectativas. Já os que tiveram o lado conservador danificado podem perder os mecanismos freudianos de defesa. Toda perturbação coloca em dúvida sua visão do mundo e de si próprios.
Como em Sigmund Freud – de quem Ramachandran se reconhece devedor – tais observações esclarecem não apenas os problemas de alguns doentes, mas o âmago da natureza humana. A consciência não é um espelho da realidade, mas uma sala de situação na qual a maioria das informações é descartada, as supostamente importantes são organizadas e apresentadas e os espaços vazios são preenchidos com suposições, de forma a formar um todo coerente.
Preenchimento, negação e auto-sugestão são matérias-primas da mente normal, cuja percepção do corpo normal também é “fantasma”. Ramachandran mostra, com uma experiência fácil de reproduzir em casa, que qualquer pessoa pode ser levada a confundir a própria mão com uma mesa ou uma cadeira. A sensação de ter um espírito “observando o mundo” é ilusória: a individualidade é uma história que elaboramos para contar a nós mesmos.