Luis 15/05/2014
Louvação
Vou fazer a louvação, louvação,louvação,
Do que deve ser louvado (...)
Louvando o que bem merece,
Deixo o que é ruim de lado.
Em quase 50 anos de carreira, Gilberto Passos Gil Moreira ainda carece de ser plenamente entendido. O discurso do amigo, parceiro e gêmeo musical Caetano Veloso, no Festival Internacional da Canção de 1968, já apontava para a complexidade da panela musical do baiano (“Gil fundiu a cabeça de vocês !!!!”). “Gilberto bem perto” (Nova Fronteira, 2013), de Regina Zappa em co-autoria com o cantor, tenta destampar essa panela fornecendo ao leitor um amplo panorama da vida e da carreira de um dos mais inventivos artistas do mundo.
Gil é um especialista em desmontar estereótipos. Para começar, sua própria origem contraria o senso comum, algo preconceituoso, de que o artista negro e nordestino é quase sempre fruto da miséria e da falta de oportunidades. Nem sempre é verdade. O pequeno Beto, por exemplo, nunca foi pobre. Filho do médico José Gil Moreira e da professora Claudina Passos Gil Moreira, pertenceu ao que se chamaria hoje de classe média alta, convivendo entre o sertão e a capital, o que seria significativo em seu trabalho, prenhe da dicotomia ruralidade/modernidade.
Logo no começo dos anos 60, cursou administração de empresas na Universidade Federal da Bahia. Já por essa época, a paixão pela música havia se instalado, primeiramente, com a devoção à Luiz Gonzaga, que “inventou” o novo ritmo nordestino que ganharia o país a partir dos anos 40, o baião. Não por acaso, a sanfona foi o primeiro instrumento de Gilberto Gil. Em seguida, assim como quase todos de sua geração, foi nocauteado por João Gilberto e sua indefinível batida de violão, iniciando ali o seu caso de amor com o instrumento, mais tarde extensivo à guitarra elétrica e suas múltiplas possibilidades.
Aprovado para uma disputada vaga de trainee na Gessy Lever, Gil muda-se para São Paulo, o que propicia o contato direto com a vanguarda artística atuante na capital bandeirante. Não demoraria a abandonar a promissora carreira de executivo para trilhar os caminhos, muitas vezes tortuosos, da seara musical. Das primeiras experiências até a explosão no mítico festival da Record de 1967, plataforma de lançamento para “Domingo no Parque”, foi quase um salto, alçando Gil à uma das posições de liderança da arte contemporânea da época, que culminaria na Tropicália.
O período do exílio londrino, a volta ao Brasil e o experimentalismo pop que marcariam a sua obra até os anos recentes, também nos dão a dimensão da pluralidade da sua produção, flertando com o rock, em outros momentos com o reggae, voltando às origens com o baião e revisitando a “velha” bossa nova. No fundo, nunca deixou de ser um tropicalista.
O livro conta essa história a partir de um olhar de dentro, que não chega a ser autobiográfico, mas, tendo sido gerado nas hostes de Gil, está impregnado das suas versões dos acontecimentos. É mais um depoimento e menos biografia objetiva. Menos objetividade jornalística e mais interpretação. Não que isso deponha contra a obra, mas é evidente certo alinhamento às ideias defendidas recentemente pelo grupo “Procure saber”, do qual Gil era um dos expoentes. Em suma :As amargas, não.
Prova disso é o silêncio em torno da polêmica do show do Reveillon de 1996, em que Paulinho da Viola, embora tenha se apresentando ao lado de Gil, Caetano, Chico, Gal e Milton em uma homenagem à Tom Jobim, recebeu menos que a metade do valor pago a seus colegas. No tiroteio verbal que se seguiu, Paulinho e Gil romperam relações, reatadas alguns anos depois, e Gal abortou um disco dedicado ao repertório do genial compositor portelense.
Outro senão de “Gilberto bem perto” é a preocupação quase constante de legitimar a atuação política do artista, sobretudo em seu período à frente do Ministério da Cultura. Há inclusive a reprodução integral do discurso de posse e de algumas outras manifestações oficiais do então Ministro. Não precisava.
De todo o modo, o volume da Nova Fronteira talvez seja o trabalho que, em letra de forma, melhor avança no desafio de entender e explicar o mix permanente da multifacetada obra de Gilberto Gil. Ainda que sob esfera permanente de louvação, afinal, entre erros e acertos, nada do que realizou, pode deixar de ser louvado.