spoiler visualizarNatália 23/11/2014
ORIGENS DA IDADE MÉDIA - RESUMO
*Apenas síntese dos argumentos do autor, sem comentários
Origens da Idade Média, de Willian Carroll Bark, é fundamentado no preceito de que o clichê histórico de que a Idade Média foi uma época de trevas e retrocesso deve ser desmistificado. Em seus argumentos, Bark defende que o processo que se iniciou na Europa ocidental com o colapso das instituições romanas e culminou na Idade Média, com sua sociedade feudal, cristã e caracterizada pelo poder descentralizado, significou o fim de um sistema falido e nascimento de outro totalmente novo, em um período relativamente difícil.
A base cultural, as inovações tecnológicas, o relativo fim da escravidão, as noções de dignidade humana e moral e todas as intensas e revolucionárias modificações que aconteceram em um conturbado tempo de invasões e domínio de diversos povos e estratificação social atrelada a terra, foram responsáveis pelas bases da formação da sociedade atual como a conhecemos.
O autor sustenta que o olhar crítico sobre o período, de principalmente historiadores sociais e econômicos como Bloch, Dopsch, Mickwitz, Rostovtzeff e Pirenne desconstruiu a opinião que por certo tempo prevaleceu, como expressa o historiador americano George Burton Adams, de que a Idade Média já fora tão estudada, que há um consenso geral entre os estudiosos do assunto. A perspectiva de tais historiadores suscita indagações de caráter mais destrutivo que construtivo, por não apresentarem interpretações que as elucidem.
Bark dedica especial atenção a Henri Pirenne e faz um detalhado estudo de sua obra de publicação póstuma Mahomet et Charlemagne. Pirenne defende em sua tese, que a continuação do estado romano sobreviveu à era merovíngia e foram a expansão Ocidental do Islã e o fechamento do Mediterrâneo ao comércio, os responsáveis pelo seu fim e início da Idade Média. Nessa concepção, a administração de Carlos Magno está intimamente ligada e só pode ser explicada pela intromissão árabe. Bark rebate fortemente as afirmações de Pirenne e demonstra o irreversível colapso romano e as modificações sociais internas já nos séculos III, IV e V, sem que houvesse qualquer interferência dos sarracenos. Destaca também, as diferenças entre o Império Romano Ocidental e o Bizantino e como o segundo pode enfrentar as crises em seu sistema e se manter por séculos como poder unificado, afastando as ameaças de invasão graças a seu poder econômico e mantendo sua base comercial e urbana.
Pirenne tenta sustentar sua tese demonstrando indícios de uma cultura secular e minimizando a importância do cristianismo; um erro grave segundo Bark. Segundo o autor, Pirenne pareceu desprezar a história teológica em uma época em que a Teologia além de influenciar a economia, educação, organização eclesiástica, literatura e arte, também desempenhava um papel decisivo na política interna e externa.
Demonstra que a maior deficiência da exposição de Pirenne sobre os quatro séculos que antecederam Carlos Magno é a incapacidade de discernir naquele difícil período, o início de uma nova civilização. E adverte como necessária a compreensão da história da Europa ocidental dos séculos IV a VI sob dois fatores: primeiro, o cristianismo e segundo, em conjunto, o colapso variavelmente gradual do governo local e da economia romana, a crescente auto-suficiência da sociedade agrária, a desordem provocada pelas contínuas invasões; fatores estes complementares para a sua formação.
O entendimento do início da Idade Média só pode ser feito, quando analisada a história social e cultural do decadente Ocidente romano, na criação de uma sociedade fruto da combinação da cultura residual clássica, com forças inéditas que se estabeleciam. Bark examina as modificações políticas, econômicas e sociais que resultaram o colapso romano e surgimento da civilização medieval. Para chegar a tal entendimento, observa “aquilo que se rompeu, por que e como”.
Bark afirma que ao expandir o seu império, os romanos perderam a sua república. Sofreram o colapso por fatores internos, na luta fraticida, na corrupção política e na degradação moral do século entre Tibério Graco e Otávio. O autor aponta a luta civil do século III como a real responsável pelo fracasso do império, pela destruição das bases da sociedade clássica, de sua vida intelectual, social e econômica.
Reformadores como Diocleciano e Constantino reunificaram o império por um breve período, retardando o processo de desfragmentação já vigente. “Reformaram o exército, fortaleceram a moeda, criaram um sistema de castas, começaram o movimento em direção ao leste e estabeleceram um sistema rígido de controle da vida econômica”. Atribui-se a Diocleciano o imposto sobre a terra baseado no caput ou jugum. Com relação à legislação política, econômica e social, a administração de Diocleciano e seus sucessores foi ineficiente. Diocleciano e Constantino adotaram governos despóticos, o que Rostovtzeff classifica “como uma vasta prisão para dezenas de milhões de homens”.
Apesar da falta de “brilhantismo” político de tais imperadores, suas administrações foram fundamentais. Ferdinand Lot especula que se não fosse a reunificação do império em fins do século III, talvez que ao invés dos reinos romano-germânicos dos séculos V e VI surgissem muito antes vários Estados ocidentais com uma civilização exclusivamente romana. Surgiriam antes, aspectos como fragmentação política, a regressão geral da sociedade, poderiam nascer Estados romanos separados, mas todos os Estados não seriam necessariamente cristãos. A unidade religiosa cristã que substituiu a unidade política romana talvez não existiria. A conversão de Constantino ao cristianismo tem sido descrita como “o fato mais importante na história do mundo mediterrânico entre a criação da hegemonia romana e o estabelecimento do Islã”.[1] Segundo Bark, é impossível conceber a Idade Média, e portanto, o nosso mundo, sem a institucionalização do cristianismo.
O autor afirma que para entender esse período de transição é necessário traçar um paralelo entre os impérios romanos Ocidental e Oriental. Reveladora das modificações que aconteciam na sociedade do mundo clássico, a explicação para o contraste entre o Ocidente e Oriente parece estar no ponto em que os aspectos sócio-econômicos e administrativos se juntam e se fundem. Enquanto o Ocidente caminhou para uma economia auto-suficiente de base agrária, abandonou as cidades e descentralizou a administração, o Oriente se apresentou como superior em população, riqueza, administração política e estabilidade de sua estrutura econômica e social como um todo. O Oriente pode pagar por proteção, enquanto que o Ocidente sofreu com as invasões germânicas. O Oriente conseguiu restabelecer a circulação da moeda, enquanto que no Ocidente, a economia flutuou entre o ouro e o pagamento in natura.
Bark destaca que a modificação econômica fundamental não foi resultado do escasseamento do ouro, mas este foi, no entanto, não causa, mas resultado da significativa redução do comércio e substituição para uma economia agrária auto-suficiente já no século IV. A economia natural caminhou para o que seria a base econômica na Idade Média. As constantes guerras civis e invasões bárbaras, as flutuações financeiras, com depreciação e inflação da moeda, a descentralização e dificuldade do governo romano no recolhimento de impostos impulsionaram a economia natural, em que o recolhimento se dava pela produção agrícola e por bens; houve assim o fortalecimento do patronato. Os curiales, a classe média superior urbana, eram responsáveis pelo recolhimento dos impostos. Como a arrecadação não podia ser repassada para o governo central, ou mesmo, para os grandes armazéns, grande parte da produção se perdia; tal processo era bastante oneroso para a sociedade. A maioria da população era atrelada a terra e os proprietários livres não tinham condições de arcar com a abusiva carga de impostos. A solução era buscar a proteção dos grandes proprietários de terra. Os coloni foram reduzidos a um estado de servidão. O método estatal de manter os serviços foi tornar o trabalho compulsório e hereditário, assim os artesãos estavam presos às corporações e os camponeses ao trabalho servil.
A falência política do Império Romano no Ocidente foi assim, acompanhada pelo crescente poder dos potentiores, grandes proprietários de terra, o comércio e a indústria praticamente desapareceram, assim como a classe média, e os camponeses foram reduzidos a um estado de dependência.
Salviano, padre de Marselha, atenta para o estado de miséria dos camponeses de seu tempo. Para a maior parte da população as revoluções políticas e sociais que ocorriam no Ocidente modificavam apenas aspectos externos de suas vidas. Pouca diferença fazia se seus senhores eram romanos ou bárbaros, preferindo estes muitas vezes os segundos, pois a obrigação compulsória com a terra e os altos impostos os levavam a uma condição, que se não juridicamente, em sua essência, era de escravidão.
A passagem para o feudalismo e o surgimento da sociedade medieval se deu de formas diferentes nas várias partes da Europa. Os aspectos em comum foram a auto-suficiência agrária e o poderio dos grandes senhores de terra. Bark sugere porém, que o acontecimento do que poderia ser chamado de uma “involução” social, nesse período marcado por várias turbulências, foi na verdade o marco de uma transição, em que modificações profundas ocorreram no modo de vida e pensamento da população.
As modificações sociais que se desmembraram a partir do século VI e formaram uma nova cultura, foram em aspectos mais internos que externos. Bark identifica quatro modificações fundamentais: 1) na forma pela qual pensavam e nos objetos de seus pensamentos, 2) na forma pela qual viviam e se expressavam, 3) naquilo que julgavam compensador fazer, e 4) na forma pela qual o faziam.
Segundo o autor, a grande modificação se deu pela substituição do pensamento e educação seculares da Antiguidade clássica pelo pensamento religioso cristão da era Medieval. A cultura greco-romana foi incorporada pela Teologia e utilizada para novos fins. Modificação refletida na arte, na literatura e em todos os padrões sociais e intelectuais, e na verdade, em todas as manifestações do pensamento.
Osório e Salviano tinham consciência de que modificações profundas estavam ocorrendo. Foi Agostinho de Hipo, porém, que fez a defesa do aparecimento da nascente cultura cristã em sua filosofia da história. Rejeitou o conceito do progresso materialista da cidade terrena para todas as idades futuras e para a sua própria, separando a religião cristã do destino do Estado romano. Santo Agostinho, embora talvez o maior líder intelectual da Idade Média, foi procedido por outros pensadores e Pais da Igreja como São Jerônimo, Leão o Grande, Boécio, Cassiodoro e Gregório o Grande.
Bark afirma que mesmo que apoiados por uma Igreja que tinha sua capital administrativa no mais poderoso centro de cultura no Ocidente, os responsáveis por transmitir a nascente civilização precisavam contar com recursos próprios. Dessa condição peculiar, nasceu o choque e a fusão da cultura das comunidades semibárbaras do Norte e Oeste da Europa, celtas e germânicos, com os gostos clássicos e o novo pensamento cristão. Nesse ambiente de pioneirismo orientado pela Igreja Cristã, nasceu uma sociedade singular, inovadora, flexível e com novos padrões de valores humanos.
Para estender a nova cultura, eram enviados monges e organizados centros monásticos para o convívio e trabalho nas comunidades agrárias, sob o governo bárbaro. Os monges pioneiros tinham que atingir um número muito grande de homens, disperso em comunidades rurais, e dar prova visível da sua superioridade de modo de vida. Os missionários, para tanto, viviam com os camponeses e participavam de seu trabalho no campo. Eram muito mais que pregadores de uma nova religião; eram professores, construtores, médicos, fundidores e principalmente, agricultores integrantes da comunidade.
Apoiando-se em March Bloch, Bark demonstra os indícios da nascente civilização medieval no empobrecido mundo agrário romano. Da regressão a condições mais simples, pré-romanas, se deu a evolução do sistema senhorial e da nova sociedade. As condições de vida dos camponeses melhoraram significativamente. Houve o declínio da escravidão e o arrendamento foi adotado como solução econômica, onde as famílias tinham seu pequeno pedaço de terra e onde o hábito determinou posteriormente, o mansus indominicatus, dia de trabalho do camponês na propriedade do senhor. Bloch fala de uma seigneurie embrionária no período romano, que se transformou nos sistemas senhorial e vassalar do feudalismo.
Bark aponta um estudo histórico de Lefebvre des Noëttes sobre a utilização da força animal. Tal estudo levou a descobertas primordiais sobre a evolução técnica e suas consequências sociais. As inovações tecnológicas na agricultura diminuíram a necessidade de força motriz. Aconteceram inovações no vestuário, nos artigos domésticos e no cultivo de novas variedades de cereais. Houve melhoramentos nos arreios que atrelavam os animais, substituídos pela coleira, e foram utilizadas as ferraduras e a atrelagem em fita. A difusão do pesado arado de roda poupava trabalho e abria à agricultura solos ricos que, sem ele, não seriam usados. Métodos como o sistema de três plantações alternadas aumentaram acentuadamente a produção agrícola. Propagaram-se os moinhos de água e descobriu-se a manivela. Os novos métodos e aparelhos aumentaram a força produtiva à disposição do homem ocidental.
Lefebvre acreditava que as novas invenções destruíram a escravidão, tornando-a desnecessária e indesejável. March Bloch argumentou que o fim da escravidão chegou primeiro, criando a necessidade que provocou a descoberta de novos recursos. O fato é que a liberdade é um elemento fundamental nesse contexto, mais precisamente os alicerces da liberdade, individualismo e dignidade que finalmente surgiram. As modificações do Início da Idade Média se deram no campo intelectual, nas novas relações entre o Estado e o indivíduo, na valorização do trabalho, através da força da Igreja cristã e da atividade missionária dos monges, na situação das mulheres, através dos ensinamentos do cristianismo. Os direitos das mulheres, dos servos, dos escravos, das pessoas em geral, embora permanecessem mais teóricos do que práticos, encontraram suas bases para conquistas futuras.
A afirmação fundamental do livro, sustenta Bark, é que o ponto decisivo da evolução da tradição ocidental foi atingido entes os séculos III e VI, quando a civilização romana chegou ao ápice de sua degradação interna e irreversível queda no Ocidente. Em condições adversas, o homem daquela época buscou soluções e encontrou novos caminhos para um período onde os problemas estruturais na sociedade pareciam insolúveis. Fica a nós o questionamento de para quem a queda do sistema falido representou uma perda. Especula Bark que não o foi para os escravos que conquistaram sua liberdade, nem para os camponeses que obtiveram graduais melhorias em seus modos de vida.
Em muitos aspectos a cultura medieval pareceu prosperar com a adversidade A excepcionalidade das tentativas de reinvenção desse período se dá pelas circunstâncias, e mais, pela combinação de circunstâncias excepcionais. A desestabilização provocada pelas contínuas invasões, combinadas com a crescente influência do cristianismo e as modificações tecnológicas e nos costumes e pensamento da população, ocorridas de forma lenta e progressiva provocaram a ruptura definitiva com a antiguidade clássica e deram início a uma nova civilização, “a mais recente, de maior alcance e mais avançada que a humanidade empreendeu”. Tal ruptura definitiva não se deu no lado Oriental, onde as civilizações bizantina e muçulmana herdaram nas concepções e valores as velhas bases sociais.
Para Bark, o sentido da Idade Média está, sobretudo nos princípios gerais, na capacidade de adaptação às condições em mutação, na capacidade dos homens medievais de conservar o melhor do passado clássico e se livrar do seu pior. Perspectiva esta, sugestiva para o mundo atual.