Marcos Pinto 05/11/2016Original!Anardeus nunca foi uma pessoa completamente normal. Ao menos, não da forma que encaramos a normalidade. Ele sempre foi considerado feio e desagradável. Sua presença incomodava; seu olhar era inquisidor. Por muitos, detestado. Sua presença, porém, para alguns, causava uma espécie de misto de repulsa e atração, algo um tanto inexplicável. Assim ele cresceu e submergiu, no calor da destruição.
Se não bastasse a estranheza nata de Anardeus, ele sente frio o tempo todo. Por isso, suas vestimentas são igualmente estranhas. Contudo, quando algo de muito ruim acontece, ele está lá para ver ou causar. Isso traz um fogo inexplicável ao seu âmago; faz com que ele se sinta vivo. Por isso, ele deseja o apocalipse, o fim do mundo, a tragédia total. Talvez assim ele seja feliz; talvez assim ele se sinta quente definitivamente.
Partindo dessa premissa, Walter Tierno cria um livro original e desconcertante. Original porque o autor cria uma trama que, aparentemente, nunca foi contada. Pessoas que odeiam o mundo é algo normal na literatura, mas não como Anardeus. A sua construção, o seu retrato, a sua caricatura... tudo goteja originalidade. Daí também surge o seu lado desconcertante. Tierno pega o que há de pior na humanidade para criar Anardeus, contudo, de uma maneira que faz com que ele pareça distante de nós e próximo ao mesmo tempo. O anti-herói é tudo que nós odiamos, porém, ao mesmo tempo, tem muito de cada um de nós. De médico, louco, técnico de futebol e Anardeus, todo mundo tem um pouco. Alguns, muito.
“Imagem é tudo! Aprendeu isso com um dos seus quinhentos e tantos livros” (p. 10).
Tudo isso é possível através de uma narrativa ultra psicológica em primeira pessoa. Anardeus se desnuda diante de nossos olhos, desmancha-se. Entendemos o seu ponto de vista e até temos um pouco de simpatia. Quando não há aproximação, no mínimo há repulsa, ódio, fogo, raiva. O que é impossível é ficar indiferente diante de um protagonista tão complexo e tão hediondo.
Os demais personagens, apesar de nem chegarem aos pés do protagonista, também são bem construídos. Contudo, em muitos momentos, ficamos reféns da visão de Anardeus e do seu egocentrismo. Entretanto, isso não é ruim. A surpresa no final só é possível graças a esse aspecto. Aliás, o que parecia ser um defeito se tornou um grande trunfo para a obra, fazendo com que o autor mereça palmas.
A ambientação também é invejável, reservando para nós, leitores brasileiros, o que há de melhor em nossa literatura: desfrutar de um lugar que seja a nossa cara. É muito bom ler trechos e reconhecer lugares que passou ou que pretende conhecer. Isso deixa o texto mais próximo, mais factível, mais palpável. Aliás, o autor faz isso muito bem. A força bruta de São Paulo está impregnada na obra. Anardeus parece que não poderia ter nascido em nenhum outro lugar do mundo. Ele e a paisagem se confundem.
“Sou democrático. Não faço distinção, nem ofereço privilégios. Odeio todos. Igualmente” (p. 14).
Se todo o desenvolvimento merece aplausos, a parte física não fica atrás: a Giz Editorial desenvolveu um trabalho gráfico excelente. A capa é muito bonita e combina perfeitamente com a obra; a diagramação, por sua vez, está muito confortável. A revisão está ótima, contribuindo também para uma leitura agradável. Ou seja, todos os aspectos foram bem aproveitados.
Em suma, Anardeus: no calor da destruição é um livro original, ágil, repugnante e envolvente. Tem tudo para ganhar ou assustar o leitor. Seja qual for o efeito, o resultado é genial.
site:
http://www.desbravadordemundos.com.br/2016/11/resenha-anardeus-no-calor-da-destruicao.html