Felipe Novaes 14/07/2020A ontogênese do solitário JavéJoseph Campbell tem um livro clássico chamado O Herói de Mil Faces, no qual fala sobre a Jornada do Herói, ou seja, como que uma mesma estrutura narrativa se manifesta em diferentes sociedades, mudando só os elementos conteudísticos superficiais.
Deus, Uma Biografia, pode ser lido como uma versão desse herói de mil faces. Mas não porque diferentes culturas chegaram a esse modelo monoteísta de divindade. O ponto é que a visão monoteísta de divindade, pelo menos essa nascida entre os povos semíticos, na verdade é uma colcha de retalhos costurada organicamente ao longo de gerações para fazer sentido. O resultado disso é o surgimento de um Deus de várias faces, porque cada face sua vem de uma divindade pré-existente adorada pela pluralidade de povos que habitava o Oriente Médio, que era uma passarela para diferentes pessoas, culturas e ideias vindos dos quatro cantos do mundo.
Apesar de dizer que não é sua intenção, Jack Miles constrói um livro cheio de pinceladas sobre o judaísmo primitivo e sobre a história dos povos que interagiram com os israelistas. A ideia do autor nesse livro de quase 500 páginas é entender como a personalidade do Deus de Israel vai sendo construída ao longo do Tanach, ou do Antigo Testamento (não têm uma correspondência exata, mas ok). A tese do autor é que independente do pano de fundo histórico dos livros que compõem o Antigo Testamento, eles foram enfileirados de certa forma que começou a compor uma narrativa sobre a ontogênese de Javé, que primeiro é um Deus protetor de uma família, para depois ser o protetor do povo gerado por essa família, e, ainda mais tarde, para ser visto como o Deus supremo, como o substrato último da realidade -- algo que quase deixa de ser o antigo culto israelita para se tornar uma espécie de neoplatonismo.