Leonardo 03/11/2013
Estreia de tirar o fôlego
Escolha ao acaso um livro recente de um autor brasileiro e a probabilidade que ele tenha cerca de duzentas páginas é grande. Muitos dos livros brasileiros recentemente resenhados aqui no blog (Lavoura Arcaica – Raduan Nassar, O Polígono das Secas – Diogo Mainardi, A hora da estrela – Clarice Lispector, Cabeça a Prêmio – Marçal Aquino, Bangalô – Marcelo Mirisola), mesmo tendo sido escritos há bastante tempo, enquadram-se nesta regrinha do tamanho. Já vi várias discussões por aí tentando desvendar o motivo disso. Há quem diga que o problema é com o mercado editorial, outros dizem que o problema é com o leitor e mesmo quem defenda que se trata dos escritores. Não vou entrar neste mérito. Chamei a atenção para este ponto porque o livro do qual vou falar pode muito bem ser considerado uma exceção no mercado literário brasileiro. Isto porque Em breve tudo será mistério e cinza é um calhamaço de 561 páginas. E é um livro de estreia. E, devo adiantar, é uma grande estreia.
Não sei se Alberto A. Reis escreve há muitos anos, mas no ano de lançamento do seu primeiro livro ele tem sessenta e seis anos. Nem de longe é um garoto. Desenha-se uma trajetória similar à de Francisco J. C. Dantas, escritor sergipano que estreou na literatura já aos cinquenta anos e que hoje é considerado um dos grandes autores brasileiros? Claro que é muito cedo para dizer isso. Lembrei-me do sergipano porque a maturidade de Alberto A. Reis é evidente neste seu primeiro livro, apesar de o estilo dos dois escritores ser tão distinto quanto possível.
Quando vi que Em breve... conta uma história de um casal francês se aventurando no início do século XIX nas minas brasileiras. Isso, por si só, foi suficiente para eu decidir que queria ler este livro. Isto e o título, fantástico.
François e Honorée, um jovem casal que vivia com relativo conforto em Paris, deixam a Europa em 1825 para tentar a sorte no Brasil, um país do qual nunca tinham ouvido falar. François trabalhava na joalheria do pai de Honorée, mas era visto como um aproveitador pelo sogro e pelos cunhados. Sob circunstâncias misteriosas, o sogro acabou pedindo que ele fosse para o Brasil, um dos únicos lugares do mundo onde se podia encontrar diamantes.
O romance, dividido em cinco partes, já mostra força quando narra a aventura do casal e do irmão de François, Vitor, para chegar ao país tropical. A partir da chegada deles no nordeste, acompanhamos a família rumo ao Rio de Janeiro, onde tentarão a licença para explorar ouro nas região diamantina, em Minas Gerais. Naturalmente não posso garantir que a reconstituição da época seja precisa, já que não tenho conhecimento considerável sobre o século XIX brasileiro, mas presumo que seja. As simpatias, os diálogos, os procedimentos, as gírias, a descrição da maneira como são preparados os alimentos, há muito esmero em tudo. Fui inteiramente transportado para aqueles ambientes extravagantes: a França, um navio, o Rio de Janeiro, a região diamantina com seus casebres e suas mansões, com seu sertão e seu pântano. Tanto é assim que li o livro o tempo inteiro visualizando as cenas como se assistisse a um seriado da HBO. Esta vivacidade na composição do cenário é um dos muitos méritos de Alberto A. Reis. Penso em quão extensiva foi sua pesquisa para nos entregar este livro. Ele nos dá detalhes ricos sobre Paris, sobre comércio de joias, sobre guerras e revoluções, hábitos dos ricos, hábitos dos pobres, viagens de navio, viagens a pé, a cavalo, intimidade, contrabando, engenhocas utilizadas para mineração, pratos típicos etc. etc. etc.
Claro que ainda não falei do tópico que ele apresenta com mais força, pois merece um comentário à parte: a situação dos escravos.
Só lendo o livro para ver como o autor desenha um panorama rico sobre como sobrevivia esta gente em meio a um ambiente sempre hostil: não são só os sofrimentos, os maus tratos, a violência cotidiana que são retratados. Vemos negros que odeiam negros, negros de um quilombo escravizando e aplicando o mesmo tratamento que outrora receberam a outros negros, vemos negros que são como cães para seus donos, fiéis até o limite do inacreditável, ao mesmo tempo em que vemos negros que não abandonam a memória de sua África.
Por falar nos escravos, eles são parte importantíssima da trama. Enquanto buscam se estabelecer na região dos diamantes, o casal francês adquire alguns escravos, dentre eles, um garoto que é picado por uma cobra, foge de seu dono, é dado como morto e se envolve em muita confusão.
Enquanto acompanhamos as aventuras de François e Honorée, vamos aprendendo mais um pouco sobre o Brasil: vemos o nascimento de uma vila, uma guerra para destruir um quilombo, vemos a opulência de poucos na região das minas, acompanhamos a revolta para derrubar Pedro I, vemos o surgimento de um jornal, a ascensão dos liberais e republicanos, o ódio pelos ingleses (que podem ser franceses, holandeses ou americanos, não importa). Alberto A. Reis não enche linguiça. Ele tem muito o que contar.
E como ele conta? Com muito bom humor. Não é um livro engraçado. Há violência, drama, suspense, mistério, guerra. Há até um duelo e um Tribunal de Júri, o primeiro do Brasil! Mas o autor não perde a chance de fazer uma troça sempre elegante dos costumes tacanhos daquela gente. Sejam os padres e seus filhos, escravos e ambições políticas, sejam os coronéis e sua falsa grandeza, ninguém escapa incólume da pena cruel de Alberto A. Reis.
Se acompanhar a história, ao longo das mais de quinhentas páginas, é uma viagem agradável, o final do livro eleva Em breve tudo será mistério e cinza a outro patamar. É claro que não vou entregar nenhum spoiler, mas adianto que, assim como no grande Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino, o título do livro aparece no meio do texto de maneira absolutamente genial. Perdi o fôlego quando cheguei a este ponto. Terminei a jornada grato de poder ter lido o romance de estreia de Alberto A. Reis. Que venham outros, Alberto!
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