Luis 08/02/2015
Romance Insular
É curioso como dois mitos da literatura brasileira tenham escrito romances pouco conhecidos sobre um bairro particularmente mítico da zona norte carioca. Raquel de Queiróz, em 1950, publicou como livro uma obra que já havia saído em folhetim na revista “O Cruzeiro”, da qual foi assídua colaborada, “O Galo de Ouro”. Dez anos depois, Carlos Heitor Cony utilizou a localidade como cenário de seu “Tijolo de Segurança” (Objetiva, 2005).
O livro, o terceiro romance do jornalista, retrata o alvoroço que toma conta dos moradores da Ilha ao se deparem com um suposto ladrão que, misteriosamente, visita os quintais protegido pelas sombras noturnas. A tranquilidade do reduto de classe média , povoada por militares aposentados e “respeitáveis”, é então sacudida pela caça ao marginal, que passa então a ser o tema central da vida da vizinhança, que, inclusive, se organiza em vigílias na esperança de capturar o assaltante.
Á primeira vista pode parecer um tema banal, mas que sob a pena de um ficcionista de sensibilidade ascendente, como era então o jovem Cony, acaba sendo o pretexto para retratar as angústias e fobias do homem comum, simbolizadas no personagem Cláudio, protagonista do romance, casado e pai de duas filhas, e que, embora a princípio não compartilhe do frenesi que toma conta dos vizinhos mais velhos, entre eles seu sogro, vai pouco a pouco cedendo à loucura coletiva.
O título, “Tijolo de Segurança” ,pode soar estranho, mas, se analisado com cuidado, se ajusta à perfeição ao tema desenvolvido pelo autor. O termo define uma área especifica em forma de tijolo, localizada em torno das aeronaves durante um voo de cruzeiro. Tal faixa seria isenta de perturbações, garantindo a regularidade da viagem. O fato da vida dos moradores da Ilha do Governador de certa forma ser regulada também pelas atividades do aeroporto do Galeão, inaugurado em 1952, aliada a ideia de que a presença real (ou imaginária) da ameaça representada pelo ladrão, se constitui em uma violação da pretensa segurança de uma vida urbana e burguesa, como a desfrutada pelos personagens, nos mostra que a escolha não é de todo despropositada.
Há ainda uma associação inusitada que me ocorreu logo às primeiras páginas. Tanto na tratativa do enredo, como no clima de aparente normalidade “classe média”, que tal como cristal, pode ser rompida a qualquer momento, o livro, guardadas as devidas proporções de época, estilo e linguagem característica à cada forma de arte, se aproxima de uma das mais inventivas produções cinematográficas nacionais dos últimos anos : “O Som ao Redor” (2013), do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho. Não sei se demais espectadores e leitores concordam, mas há uma torrente de elementos comuns às duas obras, separadas no tempo por mais de 50 anos. A Ilha do Governador e a periferia de Recife formam uma espécie de amálgama metropolitana, promovendo um diálogo entre as páginas de Cony e o filme de Mendonça Filho. No fundo, as tensões e angústias da vida são as mesmas em todas as grandes cidades.
Outro fator de destaque é que a ameaça, talvez para se tornar suportável, é sempre representada por um bode expiatório, o estrangeiro, o diferente, o marginal. O autor não se furta à essa discussão ao permitir que os moradores do bairro, ainda que não possuam provas irrefutáveis, elejam um personagem a que possam atribuir esse papel.
Não li a totalidade da obra de Carlos Heitor Cony, mas acredito que existam pelo menos três marcos de seu trabalho ficcional : “Pessach, a Tavessia” (1967); “Pilatos” (1974) e “Quase Memória” (1996). Só por esses três romances, a carreira do jornalista carioca já estaria plenamente justificada, embora outros títulos, se não chegam à excelência dos citados, ajudam na composição de um painel literário de rara qualidade. “Tijolo de Segurança” certamente é um deles.