Arsenio Meira 24/05/2014
Sublime
Armando Freitas Filho avisa, de cara aos navegantes, invocando os préstimos de Madame Lispector: " o dever horrível é ir até o fim". Dói. A decrepitude que o tempo se encarrega de moldar; a morte dos amigos e irmãos e etc; a incompreensão, a sensação de vazio. Sim, todos esses tópicos foram convocados por Armando. Mas esses tópicos nunca estão sós. A contrapartida existe. Se a poesia é um tipo de pensamento, um pensamento “poético”, trata-se do lugar de reflexão mais delicado, situado nos extremos da linguagem. Por articular um pensamento que nega o significado tocando o sumo da materialidade de que é feito, perseguindo o mistério do real ao se distanciar da realidade, a poesia possui a mesma mística do inalcançável; talvez ainda mais grave, por sua reflexão ser obscura porém mais radical e por seu gozo ser mais inflamado. A poesia de Armando procura, nesse gozo da materialidade presente, o seu próprio ser e reflete sobre o seu obscurecimento. Mas se esse ser é inapresentável a ela mesma, o desejo poético busca o inalcançável de si mesmo, um ser fora da obra mas que só existe, ainda que em estado de mistério, na obra mesma.
Se o poeta – ocupando o limiar das possibilidades da linguagem, e portanto do próprio homem enquanto ser de linguagem - sente o abrasamento sublime mais que o teórico, e ainda faz o teórico sentir seu estado ígneo quando ele mergulha em suas “lavas”, então ele está mais propenso a essa perseguição mística, carnal, venturosa. Daí encontrarmos mais a assunção da mística nos melhores poetas (Rimbaud, Baudelaire, simbolismo, surrealismo, Fernando Pessoa) do que nos melhores pensadores (cujos exemplos não ultrapassam muito os nomes de Bergson, Bataille, Heidegger), pensando em modernidade.E por isso o presente "Dever" do veterano poeta carioca - a quem Ana Cristina César confiou toda a imensidão e pureza do seu legado literário - diferentemente de alguns dos seus pares, em geral não emite sinais de ingenuidade, mas sim de intensidade, principalmente levando em conta o ritmo avassalador que emana de sua poesia, característica já tão decantada com louvor por leitores, críticos e colegas de ofício.
Com isso quero dizer que Armando sai em busca do impossível, luta, não esmorece, não fica deitado em berço esplêndido esperando a "Via-Láctea" aparecer como que em miragem; ele vive de uma mística que lhe é própria, qual seja: de um poeta sublime sempre em movimento. Até quando triste, ele caminha; de súbito, imagens fortes, exatas brotam do seu acervo poético (herança, decerto, de um Poeta que lhe é fundamental e que atende pelo nome de Carlos Drummond de Andrade.) Em "Dever", a poesia o socorre, antes de tudo, para ofertar-lhe um ponto de partida, e não de chegada, pois nunca se chega a lugar nenhum com desejo de morte. Embora teça cantos de elegia para render justas memórias ou evocações a Drummond e Ana C. César, o desejo de experiência que experimenta o limiar maximum de possibilidades e de potencialidades da linguagem, e por conseguinte do homem, para alcançar o inumano, é sempre bem trabalhado por Armando.
Assim, se Armando Freitas Filho é senhor de uma das melhores poéticas no que toca do mergulho incontido no desejo do absoluto através da carne, poder-se-ia lançar até a hipótese de que ele praticaria uma mística limitada? Mas qual o que! Por contarmos com a tradicional resistência a essa palavra na universidade e nos gabinetes teóricos, sobretudo a brasileira; e também pelo fato de não ser um termo explícito do autor, não há porque não substituir “mística” por ... poesia sublime.