Paulo 11/06/2017
Nos últimos tempos, o universo dos livros fantásticos tem sofrido uma série de mudanças. Isso acontece porque a maior parte dos temas clássicos já foram explorados dezenas de vezes. Por esse motivo para que um autor consiga se destacar no meio da multidão de livros publicados todos os meses, ele precisa ser criativo. Ou seja, ele precisa encontrar alguma forma de pegar um tema clássico e torná-lo seu, mudando algum elemento ou inserindo algum novo ponto de vista. The Fifth Season é uma história de fantasia clássica, mas Jemisin inova em vários sentidos. Nós conseguimos perceber a forma como a autora cria uma narrativa tensa e dinâmica, ao usar uma ferramenta narrativa com a qual estamos acostumados e usá-la contra nós.
O mundo de The Fifth Season é um mundo em estado terminal. Por causa de movimentos violentos nas placas tectônicas do planeta, a natureza acaba provocando calamidades geológicas de tempos em tempos. A Quinta Estação nada mais é do que algum fenômeno como uma erupção vulcânica, um tsunami que varre várias regiões costeiras, ilhas que aparecem e desaparecem subitamente ou até mesmo ácido expelido pela terra que destrói plantações. Mas, neste mundo existem os orogenes, magos da terra que são capazes de sentir estas vibrações e controlá-las na medida do possível. Entretanto, manipular as forças geológicas nem sempre é fácil: quando um orogene se descontrola ele é capaz de produzir verdadeiras calamidades. Por causarem inúmeros acidentes e destruição, a população acabou colocando a culpa pelo surgimento das Quintas Estações nos orogenes.
A história é enxergada a partir de três Pontos de Vista: Damaya, Essun e Syenide. Três mulheres que passam por situações extremas e precisam encontrar um novo rumo para suas vidas. Damaya é uma menina que vive em uma cidade no interior do continente chamado de The Stillness. Certo dia, Damaya descobre que possui poderes orogênicos ao revidar o ataque de um menino de sua escola (chamada de creche no livro) que lhe fazia bullying. A partir de então, a família de Damaya prende a filha em um celeiro e chama os Guardiões, homens encarregados de cuidar dos orogenes. A vida de Damaya muda para sempre e ela precisa agora ser levada até uma academia onde será ensinada a controlar seus poderes.
Syenide é uma orogene de quatro anéis; ou seja, é uma orogene em ascensão. Sua habilidade no controle da terra se destaca entre os seus iguais. Ela agora precisa cumprir uma de suas várias funções: ser enviada a um orogene mais poderoso com o qual terá filhos. Syenide é enviada até Alabaster, um exótico orogene de dez anéis (o máximo dentro da organização que controla os orogenes, a Fulcrum) que tem posturas muito curiosas a respeito de como as coisas devem funcionar no mundo. Ao serem enviados a uma cidade portuária para ajudarem a recuperar um porto soterrado após um leve terremoto, Syenite e Alabaster descobrem um estranho obelisco que parece reagir com os poderes orogênicos. A partir daí uma série de desastres irão acontecer.
O último Ponto de Vista é de Essun, uma mãe que ao chegar em casa após uma viagem encontra seu lar em frangalhos. Seu marido descobre que tanto sua mulher como seus dois filhos são orogenes e mata seu filho Uche a pancadas e sequestra a menina. Essun descobre que sua vida após anos tentando esconder seus poderes do olhar das pessoas mudou completamente da noite para o dia. Ela segue então em uma jornada de vingança tentando encontrar sua filha (ou o que restar dela) e matar seu marido pelo sofrimento que ele fez Uche passar.
A temática da história é o preconceito e como ele torna as pessoas em criaturas selvagens. Jemisin foi muito feliz em representar a forma odiosa como as pessoas se relacionam com os orogenes. Suas descrições são tão vívidas que eu consigo imaginar uma pessoa comum olhando torto para um rogga (forma pejorativa de se referir a um orogene). O ódio transborda dessas pessoas. Esse preconceito transborda mais claramente nas histórias de Damaya e Essun em que as pessoas chegam até a atacar fisicamente e tentar linchar os orogenes. As cenas em que isso acontece são claras e deixam o leitor horrorizado com o que acontece. Provavelmente a autora consegue este efeito por ela mesma sofrer preconceito por ser uma mulher, negra e parte de um nicho literário ainda repleto de machismo por todos os lados. Essa experiência de vida é que faz as descrições da autora serem tão reais. É interessante porque no momento em que achamos que Damaya está em segurança a caminho de uma escola para ser treinada e usar seus poderes corretamente, é o momento em que ela mais está em risco. Por serem considerados seres abjetos, os orogenes são iguais a coisas. Os Guardiões entendem os orogenes como objetos, armas a serem utilizadas para tentar ajudar as pessoas. Caso sejam prejudiciais, eles devem ser mortos imediatamente. Um orogene deve obedecer um Guardião cegamente, não importa o que dele for exigido. Se um Guardião pedir a um orogene que se auto-flagele, ele deve assim fazer. Não se deixem enganar pelos sorrisos e a aparência generosa de um Guardião: eles sempre enxergam os orogenes como seres iguais a baratas.
O leitor demora um pouco para conseguir se encaixar na história. Eu senti isso e vi outros colegas reclamando do mesmo no GoodReads. A narrativa de Jemisin demora um pouco a se tornar familiar para o leitor. O estranhamento que sentimos em relação ao mundo é grande; apesar de estarmos lidando com um universo fantástico, ele tem pouco de associação a outros livros de gênero. Aliás, eu encaixaria o livro em uma ficção científica. Isso transparece quando começamos a ver alienígenas e uma estranha tecnologia adaptada na medula dos orogenes para que eles possam sentir as vibrações do solo com mais facilidade. Entretanto, a magia está presente no livro. A forma como Jemisin liga o sistema de magia a própria natureza do mundo é bem diferente. A magia é integrante e harmônica ao mundo e caso seja abusada o mundo pode se virar contra os homens. Temos magos poderosos sim, mas estes precisam tomar extremo cuidado ao manusear a magia.
Por ser uma defensora do feminismo, vemos muito da defesa e dos horrores que passam uma mulher ao longo da história. Muitos vão querer se referir ao abuso que Damaya sofre. Sim, mas eu acho que as histórias de Syenite e Essun são ainda mais chocantes. Jemisin representa muito bem os sentimentos de Syenite ao ter que fazer sexo com Alabaster. Não existe sentimento na relação entre os dois personagens; é apenas um homem inserindo espermatozoides no corpo de uma mulher que espera poder ter um filho dele o quanto antes. Eles não fazem amor; eles trepam (desculpem a expressão forte, mas é a maneira como a própria autora se refere ao ato). Syenite se sente violada e a ação de transar se torna quase mecânica ao longo do tempo. Na história de Essun, vemos a importância para a personagem em ser mãe. Quando ela vê seu filho no estado em que encontra, ela se sente brutalizada. Ver seu pequeno filho que ela criou com todas as suas forças, espancado até a morte é uma cena brutal para uma mulher. E saber que seu marido, aquele com quem ela dividiu a moradia e a cama por tantos anos é o responsável por um ato tão hediondo foi chocante para ela que vê seus sentimentos ficarem paralisados.
Não vou comentar muito a respeito para não estragar a surpresa, mas cuidado, meus caros leitores. Vocês serão surpreendidos pelo que ela vai fazer na história. Se vocês acham que conhecem todas as ferramentas narrativas empregadas pelos autores, preparem-se para levarem uma rasteira. Só digo isso...
The Fifth Season é uma história fascinante escrita por uma autora que vem ganhando cada vez mais espaço no nicho de fantasia e ficção científica. E esse espaço ela tem conquistado com obras cerebrais e criativas como esse livro. Felizmente, esse é o primeiro livro de uma série porque eu quero saber mais sobre esse estranho mundo criado pela autor.
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