Gilson.Lopes 05/08/2020carta roubada e a genial simplicidadeCom uma narrativa meticulosa, C. Auguste Dupin (o detetive de Poe) mostra sua inteligência ao expor, com um exemplo concreto, como a genialidade pode ser simples.
O breve mistério se inicia com o desaparecimento de uma correspondência importante na realeza, uma carta roubada que contém informações suficientes para abalar os nervos de quem está no poder. Prontamente, o comissário de polícia é acionado e logo um ministro é apontado como principal suspeito, acusado de estar utilizando a carta que está em seu domínio para chantagear os grandes, ameaçando divulgar seu conteúdo.
O comissário, experiente e destemido, resolve planejar e executar uma busca completa na casa do ministro, onde acreditam estar escondida a carta. Aproveitando da ausência frequente do suspeito em sua residência, o comissário consegue dirigir uma varredura minuciosa do ambiente, procurando a carta dentro de livros, mesas, pés de cadeira, espelhos e outros locais inimagináveis. Resultado: nada de carta por aqui. Nos vemos então na casa de Dupin que, enquanto fuma e papeia com um companheiro, recebe uma visita eventual do comissário de polícia.
Entre uma notícia e outra, tudo que expliquei até agora é contado aos fumantes de cachimbo ali em cima e Dupin, ao ser interrogado por conselhos, orienta o comissário que realize nova busca, ainda mais detalhada, na residência do ministro. Resumo da ópera, após alguns meses o comissário aparece em nova visita aos amigos e, decepcionado, informa seu fracasso. Não havia encontrado a correspondência.
Surpreendendo a todos, Dupin informa que a carta pode ser do comissário naquele instante, basta que ofereça uma comissão financeira por seus serviços, já que a correspondência está ali, em seu poder. Pasmem. Como ele fez isso? Bom, ele explica. Com detalhes. O nosso esperto detetive se antecipou ao comissário após aquela primeira visita, comparecendo ao escritório do ministro em clima cordial, tendo como real interesse, em segundo plano, localizar a carta.
Dupin encontra a correspondência, exposta em um local visível a todos, camuflada como uma carta antiga, sob um móvel qualquer. Construindo cuidadosamente uma réplica, após alguns dias faz uma segunda visita ao escritório do ministro e, em uma manobra inteligente, troca as cartas de lugar, deixando a falsa e levando consigo a original, tão desejada pelo comissário. O ministro nada percebe. Recebendo seu pagamento, Dupin entrega a carta ao comissário que, saltitante e feliz, irá aos seus contratantes entregar seu trabalho cumprido. Fim de papo.
Garanto que o conto original é muito melhor que o meu resumo, no entanto, é possível extrairmos a lição. O ministro que roubara a carta, ao prever inteligentes métodos de busca que seriam adotados pelos seus adversários optou por contrariar suas expectativas. Ao pensar como eles pensariam, escolheu deixar a carta ali, onde todos poderiam ver, em seu escritório, ao alcance de qualquer um, justamente onde ninguém procuraria, por ser tão óbvio. Enganou a todos, menos nosso astuto Dupin.
Para mim, Poe nos mostra que para alcançarmos a excelência é preciso ir além – nesse caso a excelência no roubo e na chantagem, mas não estamos falando aqui sobre ética e moral. Supera a inteligência e a habilidade, transformando-a em genialidade. Inverte os papéis. Pensa como o seu adversário. Quebra o padrão. Psicologia essencial para apenas algumas páginas de um conto antigo não? Pois é. Podemos nos assustar com a simplicidade da genialidade de nossos mestres.