Flavio 15/01/2014
Autoficção e sobrevivência (por Renato Tardivo)
Flavio Cafiero, publicitário de formação e ex-gerente de produto, abandonou a vida de executivo para se dedicar à criação literária, e em O frio aqui fora, seu romance de estreia, ele mostra a que veio. Sua escrita é sólida e madura: o leitor não parece estar diante de uma estreia.
A narrativa não é linear. As sequências, que se estendem por algumas páginas, são separadas por um recuo de linha e reticências entre colchetes: [...]. Fica sugerido, portanto, que 1) as palavras do livro irrompem das entrelinhas, armadura invisível, talvez o avesso do título do romance, o “ali dentro”, e 2) ainda que descontínuas (ou porque descontínuas) as sequências estabelecem alguma conexão, uma vez que partem de uma mesma origem.
O romance pode ser classificado em um gênero que anda em voga: a autoficção. Nela, autor e narrador, se não coincidem (como na autobiografia), aproximam-se – às vezes mais, às vezes menos. O exemplo recente mais célebre aqui no Brasil provavelmente seja O filho eterno, de Cristovão Tezza. Mas autores já estabelecidos da nova safra também têm tomado esse caminho: Michel Laub, Ricardo Lísias, Paloma Vidal, entre outros.
Como Cafiero, Luna, o narrador-protagonista de O frio aqui fora, é um gerente de produto bem sucedido que resolve se aventurar nas letras. A redescoberta da identidade profissional, contudo, extrapola para os demais aspectos de sua existência. Temas como casamento, paternidade e sexualidade são abordados. Mas, até aqui, talvez não houvesse nada de muito novo. A própria metalinguagem relacionada à autoficção (o protagonista é/quer ser escritor) por si só não garantiria o êxito do livro.
O frio aqui fora funciona muito bem pela habilidade com a qual o autor trabalha a – e pela – linguagem. O estranhamento que algumas palavras provocam no narrador – e por extensão no leitor –, a explicitação demorada dos nomes próprios (o de Luna inclusive), o fato de as poucas falas das outras personagens virem entre parênteses (não se descolando do fluxo de consciência do narrador, mas diferenciando-se em alguma medida dele) fazem com que o livro suba de escala.
Chama a atenção, também, a presença de aspectos do mundo animal, que facilmente soariam em desarmonia com a trama principal, mas que, bem costurados pelo autor, situam a existência humana à evolução das espécies, perspectiva na qual o que conta mesmo é sobreviver. (Parêntese: nesse sentido, o romance dialoga com A árvore da vida, filme de Terrence Malick, vencedor em 2011 da Palma de Ouro em Cannes.)
A luta de Luna com a palavra, “luta mais vã”, diria Drummond, se dá a fim de sobreviver, de continuar. E aqui voltamos à forma mesma do romance: os signos que irrompem das entrelinhas, do invisível, e que enfrentam, corajosos, o frio aqui fora, lutam eles mesmo para continuar. No fim, o livro sobrevive: “E então? O que viria depois?”.