spoiler visualizarMatheus Cunha 31/05/2018
O Livro do Silêncio (Deuses de Dois Mundos), de P. J. Pereira
“O que o silêncio não pode melhorar, a fala também não pode – dizia o provérbio que Odoguiá adorava relembrar.”
Um dos livros mais encantadoramente gostosos de se ler que tive o prazer de apreciar nos últimos anos. A literatura fantástica brasileira deu um salto nos últimos dez ou quinze anos, um salto de fé! Um salto que recompensa não somente os autores, bravos desbravadores, como especialmente os leitores. O Livro do Silêncio é um desses saltos de fé!
Apesar de ter uma tia praticante do candomblé, e por ter todo o respeito digno a qualquer crença, eu confesso que nunca me aprofundei para entender a religiosidade de uma parcela significativa da população brasileira. O Livro do Silêncio, além de dobrar, triplicar, quadruplicar (e por aí vai) meu respeito pela cultura africana, ele serviu a um propósito, que talvez não tenha sido o do autor ao escrever tamanha obra. Ele atiçou minha curiosidade. Curiosidade nata de qualquer cientista que se prese e digo mais, de qualquer pessoa que não se alimenta de preconceitos.
O Livro do Silêncio possui uma narrativa fluida, extremamente tranquila e gostosa, apesar da narrativa ser tratada por dois pontos de vista, a primeira, de Newton, personagem principal da obra. Um jornalista com aspirações pela grandeza, que utiliza bem seu conhecimento o mundo jornalístico para alçar sua carreira. Um jovem promissor que ao que tudo indica possui um estigma; ele está fadado a traição. Newton - ou New, como o personagem mesmo se denomina – é escolhido pelo mundo dos espíritos e dos Orixás, para “substituir” temporariamente, um dos príncipes do destino (Odus), missão que ele parece relutar em aceitar, contudo, que ao mesmo tempo, ele não faz tanto esforço assim para negar.
(Spoiler alert: ao que tudo indica ele substitui o Odu da traição).
Em outro plano, ou outro tempo, ou outra dimensão, não se sabe. Orunmilá, o maior de todos os babalaôs (adivinhos), é incumbido da missão de resgatar os Odus sequestrados por um grupo de mulheres feiticeiras. A trama de Orunmilá, Exu, Oxum, Ogum, Iansã, Xango e outros, ocorre em paralelo ao de New, ambas as histórias se interferem e se coabitam, de certa forma. Enquanto New, no nosso mundo, conta sua história por meio de trocas de e-mails com um correspondente secreto chamado Laroiê, no mundo dos Orixás a narrativa ocorre em terceira pessoa, sempre acompanhando Orunmilá.
A narrativa é riquíssima em detalhes da cultura africana é a parte mais encantadora do livro, digo e repito, faltava um livro assim no Brasil. No podcast, Caixa de Histórias, que sou ouvinte ferrenho, e foi onde descobri o livro, o apresentador menciona que conhecemos a mitologia grega, pois afinal de contas ela formou o ocidente. Conhecemos os egípcios, conhecemos os chineses e nórdicos, mas pecamos pela falta de conhecimento das tradições africanas, o que definitivamente é verdadeiramente trágico. Espero que surja uma nova tendência de literatura nesse sentido, pois afinal de contas, a literatura fantástica é, provavelmente, a principal porta de entrada na leitura. E a leitura é a principal porta de entrada para o conhecimento.
O que me incomodou um pouco no livro, não obstante, eu afirmo categoricamente: Isso não afeta em nada a leitura ou faz do livro ruim! É apenas minha opinião. A narrativa do Newton é um pouco enfadonha, obviamente o autor possui um objetivo, que espero compreender ao terminar de ler a saga de três livros, mas a narrativa por meio de troca de e-mails, por mais original que seja (ao mesmo tempo que me remete aos clássicos, Frankenstein, Drácula, etc.) é cansativa e um tanto adolescente. Claro que isso reflete a personalidade do personagem, que apesar de ser um adulto, bem instruído, bem-apessoado, com objetivos de vida muito bem formados, observa-se que ele é um adolescente que ficou adulto. O extremo oposto de Orunmilá, interessante, não?
Mas porquê digo que me incomodou. O personagem perde muito tempo descrevendo seus feitos gastronômicos, suas experiências em restaurantes, com maîtres, cardápios e cartas de vinhos. Não perde a qualidade da narrativa, mas confesso que eu ficava om vontade de pular esses trechos. Eduardo Spohr, grande mestre, sabiamente me ensinou que o autor é quem está escrevendo e, portanto, ele sabe o que está fazendo. Concordo plenamente, por isso reforço novamente que estou escrevendo apenas uma opinião, baseado na minha experiência de leitura, que NÃO FOI PREJUDICADA de maneira alguma.
Por fim, o que me restou de experiência para compartilhar. Que livro sensacional e gostoso de se mergulhar, que narrativa maravilhosa, encantadora e ao mesmo tempo, misteriosa. O que mais me admirou foi justamente que o autor não entregou todas as respostas, ele não se rendeu a partilhar toda a mitologia, talvez o faça nos próximos dois livros, mas foi o mistério que permeia os búzios, que tanto permeou as linhas de O Livro do Silêncio.
Axé.