Cardoso 06/07/2021
No gênero detetivesco, o culpado é sempre o leitor: supostamente interessado em solucionar o crime, não vemos problema nenhum em refazermos todas as mortes que investigamos; não à toa livros ruins te entregarem, muitas vezes, todo o caso expositivamente na voz de uma personagem boa, permitindo você participar da violência através de um filtro, te livrando da sujeira. Bufo & Spallanzani, entretanto, mais do que te fazer cometer o crime, comete-o contra você..
Escondido numa narrativa elegantissimamente despojada, o terceiro romance de Rubem Fonseca é um drama grego cheio de contrapontos e elipses, com múltiplas narrativas que vão desaguando num último e grotesco ato que nos faz retornar ao verdadeiro problema do livro: o narrador, o escritor Gustavo Flávio, tentando iniciar o seu Bufo & Spallanzani, uma história sobre a crueldade da técnica (um mote quase heiddegeriano) centrada nos experimentos do cientista oitocentista Lazzaro Spallanzani com um casal de sapos cururu, Bufo e Marina (o “Bufo marinus” do título, hoje chamado de “Rhinella marina”).
Há de se estar atento ao uso do sapo em experimentos aqui, que se repete em três situações: na primeira, definitvamente como uma história (para não se ter dúvidas, posta como um escritor lendo seus rascunhos para um livro sobre um fato histórico); na segunda, como um experiência feita por nós (em que usamos o sapo junto do narrador) e a terceira como a narrativa do experimento... feita no próprio leitor. E aqui está o mérito de Rubem: estando um passo atrás, ele não permite que você mate seus personagens, mas os usa para, cruelmente, te abrirem e dissecarem, testando nossos limites até o último segundo sem nem termos ideia de quem, enfim, matou Delfina Delamare.
Perseguido pelo Inspetor Guedes, uma entidade noir cheia de estilo em sua rudeza de honestidade, Gustavo tenta se desfazer da suposta culpa de ter assassinado sua amante. O policial, ironicamente, levanta suas primeiras suspeitas baseado num livro do próprio acusado, o que constantemente acontecia com o próprio Fonseca, suspeito de todos os crimes de suas criações. O engraçado é que essa não era uma preocupação de um dos nossos mais premiados autores contemporâneos, falecido em 2020: ele, literalmente, joga essa questão para nós – que a culpa seja a nossa!