Euflauzino 21/08/2019Como alimentar o inconformismo
De certa forma me sinto sempre um inconformado, anacrônico e desajustado. Claro está que em O jogo da amarelinha (Companhia das Letras, 592 páginas) eu me sentiria redimido. Pensei comigo: "encontrei em Julio Cortázar alguém que me entende". E imbuído deste sentimento de pertencimento emocional que me dirigi à leitura. O choque não demorou muito a acontecer.
"De certo, só o peso na boca do estômago, a suspeita física de que alguma coisa ia mal, de que quase nunca tinha ido bem."
Continuo tentando classificar o que li, classificar o inclassificável. Seria um experimento inovador ou a reunião de tudo o que foi apreendido na literatura? Duas posições antagônicas e eu aqui nesta agonia tentando decifrar. Vocês veem em que enrascada me meti.
Nas palavras do próprio autor este livro é um antirromance. Um labirinto em que a gente vai se perdendo, vai negando tudo e a partir desta negação questionando a vida.Não há estética definida, não se segue nenhum cânone ou estrutura pré-estabelecida, é a destruição do romance, um salto ao mundo poético.
No início do livro somos indagados qual caminho escolher: a leitura pode ser feita de duas maneiras, seguindo a forma corrente, capítulo a capítulo, terminando no capítulo 56. Ou começando pelo capítulo 73, numa outra ordem, cheia de saltos, idas e vindas em 155 capítulos. Claramente escolhi o segundo caminho, o mais longo, não queria perder nada deste livro.
O livro é dividido em duas partes. Na primeira parte temos o personagem principal Horacio Oliveira em meio a seus colegas (eu não diria amigos) do Clube da Serpente, exilado na França, discutindo questões filosóficas, tais como o que é a realidade ou a razão, entre outras abordagens complexas que eu leitor vulgar, médio, demorei a alcançar (isso quando alcancei).
Em meio a estas reuniões temos um triângulo amoroso entre Horacio, Maga (provavelmente uruguaia, ninguém sabe, apaixonada por Horacio) aceita no grupo, porém de capacidade limitada, alguém comum em meio a intelectuais e Gregorovius (apaixonado por Maga). Horacio nega este amor ou questiona ou simplesmente não sabe o que é.
“E por todas essas coisas eu me sentia antagonicamente próximo a Maga, gostávamos um do outro numa dialética e imã e limalha, de ataque e defesa, de bola e parede. Suponho que a Maga tivesse ilusões a meu respeito, devia achar que eu estava curado de preconceitos ou que estava aderindo aos dela, sempre mais leves e poéticos.”
O melhor da primeira parte do livro é o jogo entre Horacio e Gregorovius, feito de imagens, linguagem figurada, sentimentos explosivos. Horacio é de uma infelicidade atroz, desconcertante e parece acreditar que não há saída para a salvação do homem ocidental. Gregorovius o desafia, mas não me parece à altura de tal enfrentamento, o faz por despeito, por ciúme, pela rejeição de Maga a seu amor.
“Meu amor, não te amo por você nem por mim nem pelos dois juntos, não te amo porque o sangue me leve a te amar, te amo porque você não é minha, porque está do outro lado, aí para onde me convida a saltar sem que eu consiga dar o salto, porque no mais profundo da posse você não está em mim, não te alcanço, não passo do seu corpo, da sua risada, tem horas em que me atormenta que você me ame (como você gosta de usar o verbo “amar”, com que cafonice o vai deixando cair sobre os pratos e os lençóis e os ônibus), me atormenta seu amor que não me serve de ponte, porque uma ponte não se sustenta só de um lado...”
A segunda parte me agradou mais porque está livre da intelectualidade, há ali uma grande carga emocional, um jorro de sentimentos. Horacio retorna a Buenos Aires, tentando se refazer de sua decepção em relação à vida e ao amor, procurando se reencontrar. É recebido por seu amigo Traveler, seu alter ego, alguém que na visão de Horacio encontrou um certo equilíbrio e que agora está casado com Talita em um amor prosaico e confortável. Parceria invejável.
“Seu amor por Traveler é feito de panelas sujas, de longas vigílias, de uma suave aceitação de suas fantasias nostálgicas e de seu gosto pelos tangos e pelo truco.”
Talita desperta em Horacio sensações até então latentes, ele começa a enxergar nela sua antiga paixão, Maga. Forma-se novamente o triângulo, regado a rivalidades, embates filosóficos e muita carga emocional. Admiração, amor e ódio. Não há violência física apenas verbal e Horacio caminha rapidamente para a beira do abismo. O refúgio poderá ser a loucura, uma reordenação própria do mundo para poder se encaixar.
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