spoiler visualizarGuilherme 25/10/2016
O prazer do olhar
Um dos últimos romances de Alberto Moravia, L’uomo che guarda já traz em seu título indícios do que propõe: a contemplação, marca tão forte nos personagens icônicos de Moravia e presente desde seu primeiro romance com Gli indifferenti. Também neste romance mais recente temos um protagonista contemplativo, feroz em seus pensamentos e lento em suas ações.
A trama se passa na Roma de 1968 e centra-se na vida e na cabeça de Dodo, com seus (des)encontros, suas reflexões e suas memórias. Com uma linguagem viva e sem moralismos, o livro acabou sendo adaptado para o cinema anos depois, não para menos tendo sua classificação como drama pornográfico. Isto porque nosso narrador-personagem narra sem escrúpulos cenas de exibicionismo voluntário ou não, deliciando-se com cada detalhe. Sim, Dodo é “classificado” por várias personagens do livro como voyeur e, com o passar das páginas, acaba assumindo isso para si mesmo, elaborando sua filosofia de que para cada voyeur há alguém exibicionista e vice-versa. Para Dodo há três belas mulheres com papéis bastante distintos, mas que o guiam em sua jornada introspectiva de reflexão e autocompreensão.
Fã da psicanálise, Moravia traz novamente muita inspiração das teorias freudianas neste romance através da relação conturbada de Dodo com seu pai, com quem disputa o território e os olhares femininos que passeiam pela casa dos dois. A disputa de egos é feita sempre implicitamente e só é revelada através de terceiras, culminando na própria lembrança infantil de Dodo ao assistir escondido a uma relação sexual de seu pai com sua mãe, causando-lhe extremo ciúmes da mãe e ódio pelo pai.
Dodo busca desde jovem contrariar o pai e “tudo aquilo que ele representa”, ou seja, a burguesia, a decadência moral do patriarcado, o cientificismo puro. Ao mesmo tempo, passa toda a sua vida dependente dele, revelando aspectos de masoquismo em sua personalidade ao descrever - sempre contemplativo - o órgão sexual de seu pai, que era maior do que o dele, a área de especialidade de seu pai, que era mais bem vista do que a dele, o poder econômico de seu pai, muito maior do que o dele. Sempre em comparações que soam ao personagem desvantajosas para si mesmo, Dodo reluta em aceitar o fato de se sentir inferior àquele que é pai e rival ao mesmo tempo, disputando com ele a própria esposa.
Dodo não é apenas submisso ao pai como também à esposa, Silvia. Mulher de personalidade e atitude, livre, dona de suas ações e, até certo ponto, de seus desejos: por se deixar levar pelos desejos, cede à tentação de manter relações com o sogro, arrependendo-se sempre depois; por ser dona de suas ações, decide sair da casa do marido que ama e do sogro que a seduz, uma vez que o marido voyeur ironicamente “não enxerga” o que acontece na casa.
Silvia é uma personagem feminina forte e sua relação com o sexo é ambígua e versátil, assim como sua relação com os homens da casa. É no sexo com Silvia que se pode ver a submissão de Dodo e a dominação de seu pai: enquanto Dodo fica por baixo contemplando-a como a uma “Madonna”, seu pai prende Silvia por baixo dele e a trata como uma “porca puttana”, do mesmo modo como Dodo presenciou a cena de sexo entre seus pais. Aqui, novamente fica explícita a teoria freudiana, em que Dodo compara sua mãe à sua esposa, sempre em disputa com seu pai - e sempre submisso em relação a ele.
É inevitável estabelecer conexões com o primeiro romance de Moravia: Dodo parece um Michele Ardengo que cresceu e amadureceu, mas que não se moveu para sair da situação de decadência moral em que estava inserido, uma vez que não faz parte da natureza de nenhum dos dois a ação espontânea. Assim como Leo, o pai de Dodo antagoniza e disputa o espaço; a Dodo resta o que restava a Michele: confrontá-lo em pensamentos, com diálogos imaginários e ações abstratas perdidas na sua imaginação, usufruindo do poder e da proteção do pai. Em troca, cede sua dignidade através de contemplações masoquistas da realidade ao seu redor.