Esther 17/09/2017Uma verdadeira experiência literáriaÀ primeira vista, o livro S. me saltou aos olhos como uma belíssima, mas também desafiante obra. Fiquei encantada com a premissa do livro e com o cuidado da edição. Encontramos dentro da caixa - lacrada - de S. um livro com capa de tecido, envelhecido com suas páginas amareladas, sinais de manuseio, carimbos e anotações. Completando a riqueza, diversos anexos que vão desde fotos e documentos a guardanapos rabiscados.
Foi um dos poucos livros que li que cresceu comigo. Quanto mais eu lia, mas eu crescia e mais informações eu retirava dele. Quando mais eu olhava os anexos, ora uma foto - em papel fotográfico real -, ora um encarte de jornal - em papel jornal real -, mais encantada eu ficava com a obra que havia adquirido, meu livro mais caro.
A premissa é de um livro dentro de outro. Impresso como um livro de biblioteca encontramos "O navio de Teseu" do autor VM Straka, traduzido por FX Caldeira, ambos cujas identidades nunca foi confirmada. Nas margens temos a história de Jen e Eric, dois estudantes que buscam compreender a verdade por trás do livro.
A obra foi organizada pelo cineasta J.J. Abrams, criador da série de TV Lost, e por um professor de escrita criativa Doug Dorst. É um livro e ao mesmo tempo um quebra cabeças com seus mistérios e pistas.
Há uma hipertextualidade tremenda que enriquece e ao mesmo tempo transforma o livro num desafio. Não é um livro para leitores iniciantes. A história vai exigir muito do leitor, mas irá recompensar aqueles que se dedicarem. Muitas vezes será necessário se afastar de S, pensar, filosofar, especular, reunir coragem e só então voltar a decifrar o livro. É importante ressaltar que a leitura na ordem facilita e muito o entendimento. Embora seja possível ler as notas simultaneamente, seguir a ordem proposta acelera a leitura e a compreensão da narrativa. Veja bem, não é impossível ler tudo ao mesmo tempo, mas não é recomendado. Para isso, segue a ordem que usei para leitura: (1) Leia o Prefácio, (2) Leia o texto de "O navio de Teseu" de Straka; (3) Vasculhe as notas de rodapé do tradutor/editor, Caldeira; (4) Leia as anotações de Eric e Jen; primeiro as à a lápis que podem ser lidas concomitantemente ao texto de Straka, as em preto e azul, as em laranja e verde, as em roxo e vermelho e finalmente as em preto e preto. E quando ler os anexos? Recomendo lê-los conforme eles forem sendo citados nas anotações do Eric e Jen. Se lê-los antes, talvez não os entenda completamente e deixá-los para o fim não entenderá algumas referências a eles no meio das anotações.
Pra mim, um dos temas mais trabalhados ao longo do livro foi a dicotomia existente entre símbolo e significado. O personagem principal de “O navio de Teseu”, “S” possui amnésia e se vê perdido sem saber quem era ou quem é.
“Ser um reescrito a partir de um primeiro esboço perdido.”
- S. O navio de Teseu. Página 126
“Uma pessoa não é nem mais nem menos que a história de suas paixões e realizações.”
- S. O navio de Teseu. Página 360-361, anexo
Tudo que ele tem é o símbolo S que ele passa a ver em diferentes locais e situações. Aos poucos ele vai cooptando significados ao símbolo sem verdadeiramente o definir – este será o trabalho do leitor. Em outros momentos, S sê vê em busca de uma mulher misteriosa. Ele sabe a aparência dela, sua voz, ou seja, seu significado, mas durante o livro diversos nomes são dados a ela. Aqui temos a primeira antítese: o personagem principal tem um sinal – o “S” – mas não conhece de início seus significados enquanto a mulher tem o seu significado mas ele desconhece seu “símbolo” – no caso, o nome dela.
“- Taraqachi.
- Não sei o que isso significa.
Ela o olha em silêncio.
- Certo – diz ele, dando de ombros. – Taraqachi.
O que importa é o que você faz, não como é chamado.”
- S. O navio de Teseu. Página 334
“Uma terceira verdade, então: a Companhia de Vévoda também roubou os símbolos.”
- S. O navio de Teseu. Página 348
Outro tema pungente no livro é o da maturidade e a questão do “eu ideal”. Quem o autor queria ou achava que devia ser, e quem ele se torna durante a narrativa. Frequentemente S é descrito sendo levado pelo navio como metáfora para a conjuntura política e econômica.
“(...) se ele pelo menos conseguisse descansar, recuperar forças, poderia descobrir qual daquelas posições era mais fiel à pessoa que ele era, e poderia escolhero que fazer em vez de simplesmente fazer.”
- S. O navio de Teseu. Página 71
“Você podia não ser um de nós antes, mas agora é. Goste disso ou não.”
- S. O navio de Teseu. Página 120
“S. é só um cara... Engatinhou para fora da água e terminou no meio de algo enorme e perigoso.”
- S. O navio de Teseu. Página 174, nota da Jen a lápis
Ao mesmo tempo que o autor vai sofrendo as suas transformações, assim também o faz o navio que o transporta, num paralelo ao clássico paradoxo sobre o navio de Teseu. Filósofos têm tentado responde-lo ao longo da história, tentando descobrir se algo que modificado tantas vezes pode ser considerado a mesma coisa.
O navio com que Teseu e os jovens de Atenas retornaram de Creta tinha trinta remos, e foi preservado pelos atenienses até o tempo de Demétrio de Falero, porque eles removiam as partes velhas que apodreciam e colocavam partes novas, de forma que o navio se tornou motivo de discussão entre os filósofos a respeito de coisas que crescem: alguns dizendo que o navio era o mesmo e outros dizendo que não era.
– Plutarco. Vida de Teseu 23:1.
“Todas as vezes o navio abandona uma característica e ganha uma nova, reinterpretada e refeita. Algumas das mudanças são marcantes (...); outras, insignificantes (...). Algumas das mudanças são felizes; muitas não são, cada uma parecendo ampliar a diferença entre o que se pretendia e o que se revelou.
- S. O navio de Teseu. Página 291
“A intuição me diz que é o mesmo navio, o modo ressuscitado e devolvido a uma condição ainda mais lamentável que seu habitual caos desmazelado. Deve ser a embarcação mais desajeitada, dilapidada e desconjuntada a flutuar nos mares, uma ofensa até mesmo às sensibilidades náuticas mais compassivas.”
- S. O navio de Teseu. Página 395
Não pense que esses são os únicos temas tratados na obra. Podemos ainda depreender do texto o poder da escrita como forma de resistência política e a questão da censura, a descoberta do amor e da sua perda e principalmente a questão da identidade através da literatura. Para aprofundamento da discussão destes temas e de outros, recomendo os textos disponíveis no site “The Key to ‘S’” feito pelos alunos da Universidade de Middlebury em Vermont, EUA.
“(...) mas algo sério sobre tentar contar uma história ou expressar um sentimento, mas nunca conseguir que saia do jeito que você quer?”
- S. O navio de Teseu. Página 207
“Palavras são um presente para os mortos e um alerta para os vivos.”
- S. O navio de Teseu. Página 234
As influências dos autores são muitas e nem todas reveladas facilmente. Uma delas seria um paralelo entre a vida de VM Straka ao autor B. Traven, um escritor de esquerda exilado no México sobre o qual se tem pouco mais que boatos com menos certezas ainda. Outra seria a própria capa do livro. O navio em um redemoinho faz referência ao conto de Edgar Allan Poe intitulado “Uma descida ao Maelström”. A história do conto é sobre um redemoinho formado junto a um arquipélogo. Trata-se também de uma história dentro da história em que um pescador é apanhado por um furacão e levado ao redemoinho sem conseguir sair. Um dos homens da tripulação escapa porém – assim como “S.” – e passa a contar o ocorrido. Poe trabalha então com o horror do acontecido seguido de uma descrição espetacular e encantadora da natureza.
“O resultado foi precisamente o que eu esperava que fosse. Como eu mesmo é quem agora conto essa história ao senhor – o senhor pode ver que de fato escapei – e como o senhor já tem conhecimento da maneira como tal fuga foi efetivada, e deve, portanto saber por antecipação tudo o que direi em seguida – vou levar a narrativa rapidamente à conclusão. Transcorrera aproximadamente uma hora, após haver abandonado a sumaca, quando esta, tendo descido uma grande distância abaixo de mim, deu três ou quatro violentos giros em rápida sucessão, e, carregando com ela meu querido irmão, afundou verticalmente, de uma só vez e para sempre, no caos de espuma lá em baixo. O barril ao qual eu estava amarrado afundara muito pouco, mais ou menos a metade da distância entre o fundo do vórtice e o ponto do qual saltei de bordo, antes de acontecer a grande mudança que se deu no caráter do turbilhão. A inclinação dos lados do imenso funil foi se tornando a cada momento menos íngreme. Os giros do redemoinho eram gradualmente menos violentos. Aos poucos, a espuma e o arco-íris desapareceram, e o fundo do abismo parecia elevar-se lentamente. O céu estava claro, os ventos amainaram, e a lua cheia mostrava-se resplandecente a oeste, quando me encontrei na superfície do oceano, à plena vista das praias de Lofoden, e por cima do lugar onde estivera o abismo do Moskoe-ström.”
Minha conclusão sobre o livro é de que se trata de uma obra prima. Mesmo que não se torne um clássico, é certamente uma experiência de leitura válida. Porque é exatamente disto que o livro trata: uma experiência mais do que apenas uma leitura. Recomendo muitíssimo e acho que todo bom leitor devia entrar em contato com essa obra – de preferência impressa – pelo menos uma vez.